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São Paulo, domingo, 31 de agosto de 2003

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IRAQUE OCUPADO

Moderados, que admitem ocupação, e militantes, que estão ansiosos para fundar Estado islâmico, se confrontam

Reconstrução do país gera rixa entre xiitas

NEIL MACFARQUHAR
DO ""NEW YORK TIMES", EM NAJAF

Os clérigos que comandam a maioria muçulmana xiita do Iraque se confrontam numa luta violenta pelo poder. Ela opõe os aiatolás mais velhos e estabelecidos, que aconselham uma atitude de paciência em relação à ocupação americana, à facção mais militante, que está ansiosa para fundar um Estado islâmico.
Os militantes são suspeitos de serem responsáveis por uma série de atentados violentos, incluindo o sangrento ataque a uma mesquita ocorrido anteontem, que matou dezenas de pessoas em Najaf (entre as quais o aiatolá Mohammed Baqer al Hakim), num momento em que os xiitas sentem que chegou a hora de exigir seus direitos.
O derramamento de sangue começou em abril, com o assassinato de um clérigo jovem e destacado, Abdel Majid al Khoei, dentro do mais sagrado santuário da cidade.
A morte de Al Khoei continua a ser uma questão tão explosiva que foi apenas na última segunda-feira que a polícia e a Promotoria confirmaram, pela primeira vez -com muita relutância-, que 12 suspeitos do crime foram detidos neste mês e que existe a previsão de fazer outras prisões.
O impasse ganha vida nas vielas tortuosas da cidade sagrada de Najaf, palco da disputa pela liderança da comunidade xiita do Iraque -que reúne cerca de 60% dos 25 milhões de iraquianos.
Por um lado, estão os aiatolás mais velhos e de nível superior, reunidos em torno do grande aiatolá Ali al Sistani. Eles acreditam que seja apenas questão de tempo até que os Estados Unidos criem no país um Estado democrático, que os xiitas poderão dominar pelo simples peso de sua maioria.
Por outro lado, há os adversários mais duros da ocupação americana -que apóiam Moktada al Sadr, para quem os xiitas deveriam buscar ativamente criar um Estado islâmico, seguindo os moldes do governo religioso do Irã.
Embora os clérigos mais jovens não convoquem seus seguidores para uma guerra santa declarada, eles dão a entender que essa possibilidade existe.
Ninguém aponta diretamente para Al Sadr, descendente de uma longa linhagem de clérigos ilustres, mas a polícia, os promotores e as autoridades americanas, sem falar na população comum de Najaf, vêem seu grupo como aquele que está por trás da violência.
""Todo o mundo já esperava que acontecesse algo do gênero", disse o comerciante Qassim Shabbar, de Najaf, aludindo à possível participação de Al Sadr num atentado ocorrido domingo passado, quando uma bomba explodiu diante da casa do aiatolá conservador Mohammed Said al Hakim (tio do aiatolá morto anteontem), deixando três mortos.
Algo que lança uma sombra sobre toda a discussão em torno do poder dos xiitas é a questão do papel do Irã. Oficialmente, Teerã diz que quer um Iraque estável e democrático, esperando que isso leve ao domínio dos xiitas.
Mas alguns líderes iraquianos acreditam que o Irã queira manter os Estados Unidos ocupados com o Iraque, para que Washington não volte sua atenção para o país islâmico vizinho, e que, por esse motivo, esteja apoiando Al Sadr. Ou, o que seria ainda pior, Teerã poderia apoiar os membros remanescentes do Ansar al Islam, um grupo terrorista islâmico que as autoridades americanas acreditam que venha tramando atentados contra interesses ocidentais em Bagdá.
Imediatamente após o assassinato de Al Khoei, filho de um grande aiatolá muito querido que foi morto durante o regime de Saddam Hussein, os moradores de Najaf tinham medo de falar sobre o assunto.
Algumas semanas atrás, porém, penduraram cartazes enormes nas ruas e mencionaram abertamente a desconfiança de que Al Sadr e seus seguidores tenham, de alguma forma, participado do crime.
""Desgraça e humilhação aos hereges e aos assassinos", dizia um cartaz desse tipo exposto perto do gabinete de Al Sadr. Moradores de Najaf disseram que adversários do aiatolá se dirigiam com cuidado até a porta de seu gabinete, à noite, para colar fotos de Al Khoei.
As possíveis ramificações do inquérito sobre a morte de Al Khoei são tão explosivas que a Promotoria e a polícia se negam a comentar o assunto, dizendo apenas que prenderam uma dúzia de homens que teriam sido identificados por testemunhas. Estas teriam dito que eles tinham ligação com o crime.
O xeque Ahmed Shabani, um dos assessores de Al Sadr, negou que os seguidores do clérigo tenham participado de qualquer violência.
Os setores conservadores de Najaf vêem Al Sadr e seus seguidores como agitadores. A diferença entre os dois grupos fica evidente em qualquer evento religioso. É tão óbvia quanto a diferença entre frequentadores de uma festa de música eletrônica e pessoas que assistem a um concerto sinfônico. Os seguidores de Al Sadr demonstram um fervor explosivo. Eles costumam repetir palavras de ordem contra os Estados Unidos, enquanto dão pulos rítmicos e batem no peito com suas mãos. Já os seguidores dos clérigos mais velhos, mesmo os mais jovens entre eles, ficam sentados calmamente em grupos ou se colocam em pé e entoam slogans calmos, sem conotação política.

Milícia popular
Uma das propostas mais controversas de Al Sadr foi formar uma milícia popular que, segundo seus assessores, garantiria maior segurança nos bairros xiitas. A intenção também era que ela atuasse como uma espécie de polícia da moralidade, defendendo os padrões muçulmanos de comportamento público.
""Não se trata de um exército de desestabilização ou de enfraquecimento da segurança", disse o xeque Mohammed Fartousi, um dos principais assessores de Al Sadr em Sadr City, uma favela de Bagdá -de 2 milhões de habitantes- que constitui a maior base de apoio de Al Sadr.
Os militantes tomam cuidado para não provocar a ira das forças militares americanas. Para tanto, evitam citá-las nominalmente. No entanto a ameaça de enfrentá-las está presente em quase todas as pregações e na maioria das entrevistas que concedem.
""Não temos aviões, tanques ou artilharia. Nossos inimigos os têm", disse Fartousi, prometendo que os milhares de voluntários que estão se inscrevendo para atuar no chamado "Exército do Mahdi" vão defender os bairros xiitas de qualquer ataque.
""Se chegarmos a um ponto em que não haja mais pedras, usaremos nossos próprios corpos para combater."
Em Najaf, clérigos mais velhos fazem observações sarcásticas sobre a possibilidade de algum tipo de milícia popular proteger figuras ou santuários xiitas.
Entretanto alguns comerciantes de Bagdá temem que já tenha sido formado algum tipo de movimento religioso clandestino e violento.
Praticamente todas as lojas da cidade que vendem bebidas alcoólicas -comércio restrito aos cristãos, visto que o islã proíbe o consumo de álcool- foram atacadas com bombas ou com granadas nos últimos meses.
Os clérigos jovens que cercam Al Sadr afirmam que o álcool deve ser proibido, mas dizem não estar fazendo uso de violência para impedir que ele seja vendido.
Oficiais das forças de ocupação lideradas pelos Estados Unidos reconhecem que nenhuma comunidade é mais influente no Iraque que a xiita.
Um alto oficial descreveu o consentimento tácito dado pelos aiatolás de mais alto nível à administração transitória do país -controlada pelas forças de ocupação- como um fator estratégico de suma importância para a manutenção da pouca estabilidade que existe no Iraque. ""Conservar o apoio dos xiitas é essencial para o êxito da coalizão", disse ele.
Os partidários de Al Sadr afirmam que a divisão entre agitadores e conservadores faz parte de uma tradição xiita secular. ""Historicamente, ela data das duas linhagens distintas no pensamento muçulmano e, especialmente, no xiita", disse Shaibani, um clérigo de 33 anos que dirige um tribunal islâmico em Najaf, desafiando os religiosos mais velhos.
""Existem aqueles para os quais é preciso empreender a guerra santa em tempos de opressão, mas há também aqueles que dizem que devemos nos manter em silêncio até o ressurgimento do Mahdi", disse ele, falando do salvador xiita.
Geralmente, os xiitas não gostam de discutir suas rivalidades internas. Altos representantes do Conselho Supremo da Revolução Islâmica no Iraque e do Partido Dawa -que têm membros que participam do Conselho de Governo do Iraque- retratam a tensão como expressão natural de desabafo, após anos de repressão.
""Depois de 35 anos, as pessoas só querem expressar suas idéias, mesmo que nem sempre isso seja feito de maneira responsável", disse Adel Abdel Mehdi, alto representante do conselho. ""É um sinal saudável de que os xiitas estão deixando a repressão para trás. Temos uma comunidade que procura encontrar seu caminho, algo que pode ser perigoso se não estivermos unidos."
Quando indagados diretamente, os clérigos de mais alto nível negam que exista uma cisma e atribuem a violência a membros do partido Baath interessados em desestabilizar o país. Uma bandeira pendurada pelos partidários de Al Sadr diante de seu gabinete, na última segunda-feira, atribuiu o atentado da véspera às forças de ocupação lideradas pelos Estados Unidos.
Mas os grupos xiitas mais estabelecidos pensam que táticas criminosas, como os ataques a lojas de bebidas alcoólicas, constituem um sinal de que os militantes são imaturos e dificilmente vão conseguir conservar o apoio dos fiéis.
""Esse movimento infantil impõe suas idéias aos outros", disse Ali Abdel Mehdi. ""Idéias radicais mostram a ausência de conhecimentos ou de estudos profundos dessas pessoas, que são adolescentes. Trata-se de pessoas que não fizeram estudos religiosos."
Apesar disso, poucas críticas públicas foram feitas a Al Sadr. Os conservadores xiitas parecem não saber exatamente como desafiá-lo, acreditando que sua popularidade entre os marginalizados possa se tornar uma importante base de apoio.
Fora da comunidade xiita, algumas autoridades crêem que Al Sadr seja uma ferramenta útil. Os militantes são um exemplo claro da guerra santa que poderá ser desencadeada se as forças de ocupação não cumprirem suas promessas. A questão agora é saber se os clérigos mais velhos e respeitados conseguirão mudar a opinião das bases xiitas ou se a frustração generalizada tornará ainda mais atraente a perspectiva de criação de um Estado islâmico.
Os clérigos moderados acreditam que o antídoto mais rápido ao radicalismo consista em oferecer segurança, empregos e eletricidade, coisas que, segundo eles, afastariam os xiitas comuns das posições extremistas.
""As pessoas têm medo do caos", disse Mohammed Hussein al Hakim, ferido no ataque à casa de seu pai. Ele também foi ameaçado algumas semanas atrás. ""Se conseguirem resultados concretos em pouco tempo, as forças de ocupação impedirão os clamores por esse tipo de ação."


Tradução de Clara Allain


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