Índice geral New York Times
New York Times
Texto Anterior | Próximo Texto | Índice | Comunicar Erros

Inteligência/Elif Shafak

Construindo uma ponte

Istambul

Os contadores de histórias sempre tiveram um dom para incomodar os políticos; as diversas verdades da literatura são difíceis de reconciliar com a verdade única da política.

Recentemente, o escritor Paul Auster, que vive no Brooklyn, em Nova York, contou a um jornal turco que ele não quis visitar a Turquia por causa da censura. Com mais de cem jornalistas na prisão, a disposição da Turquia a restringir a liberdade de imprensa causa preocupação, disse.

A posição de Auster irritou o primeiro-ministro turco, Recep Tayyip Erdogan, que não perdeu tempo em chamar o autor de obras tão inesquecíveis quanto a Trilogia de Nova York de "homem ignorante".

"Quem se importa se você vem ou não?", perguntou Erdogan. "A Turquia perderia sua grandeza?." Então ele criticou Auster por participar de uma feira de livros em Israel em 2010, enquanto milhares de inocentes sofriam em silêncio e morriam na faixa de Gaza.

Auster foi igualmente rápido para responder em uma declaração: "Não importa o que o primeiro-ministro possa pensar sobre o Estado de Israel, o fato é que lá existe livre expressão e não há escritores ou jornalistas na prisão". A mídia turca acompanhou o debate de perto, mas o grupo com maior interesse na luta é a comunidade literária turca.

Escritores, artistas e acadêmicos deveriam recusar convites de partes do mundo onde a democracia está longe do ideal? A recusa a visitar é um protesto eficaz, ou é melhor aparecer e criticar lá e na hora? Qual abordagem é mais benéfica para a democracia: protestar contra os governos ou se conectar com a população?

Eu estava entre os milhares de espectadores quando o U2 veio a Istambul pela primeira vez, em setembro de 2010, como parte de sua turnê mundial. Quando a banda irlandesa começou a cantar "Sunday Bloody", o estádio rugiu, pulsando de energia e um sentimento de solidariedade.

Foi um momento histórico, pois o U2 havia se recusado a vir à Turquia por causa do histórico de violações dos direitos humanos no país. (Em seu álbum de 1997 "Pop", eles haviam mencionado o nome de Fehmi Tosun, um ativista curdo que desapareceu enquanto estava preso na Turquia e pediram que seus ouvintes lembrassem dele.)

Agora, havia 50 mil pessoas cantando juntas, lembrando juntas. Eu olhei ao redor, observando os rostos na escuridão: turcos, curdos, alevitas, sunitas, armênios, judeus, jovens e pessoas de meia-idade, mulheres e homens, tradicionais e cosmopolitas.

A sociedade civil da Turquia personifica um amplo leque de vozes e todos se beneficiam quando ouvem artistas de tradições diferentes. Onde a política falha e os políticos recorrem à linguagem do "nós contra eles", a arte e a literatura podem transcender fronteiras.

O silêncio gera isolamento. O isolamento gera medo do outro. A literatura e a arte ainda são nossas melhores ferramentas para construir pontes. Uma sociedade -especialmente com uma população jovem como a Turquia- globalmente conectada é mais aberta a mudanças, a novidades e ao desenvolvimento.

Diversos artistas, incluindo Elvis Costello e a banda de rock alternativo The Pixies, decidiram não tocar em Israel em junho de 2010 depois de seu ataque a um navio de ativistas turcos que rumava para Gaza. Benny Dudkevitch, um veterano editor da Rádio Israel, resumiu a decepção dos fãs dos Pixies dizendo que o cancelamento foi "um tapa na cara", relatou o " Times". "Esperamos tanto tempo por eles que isso dói."

Dói mesmo. Mas dói para a população ou para os políticos? Os boicotes atraem a atenção da mídia, mas não fazem parte da solução definitiva.

Aqueles que não se importam com boicotes não são afetados e os que se importam perdem uma oportunidade de se conectar com o restante do mundo.

A Turquia tem um histórico de deterioração da liberdade de expressão e de imprensa. Ainda existe uma lei para garantir que nenhum cidadão insulte a condição de turco, embora ninguém possa dizer exatamente o que isso significa. Um importante editor independente, Ragip Zarakolu, continua preso. Recentemente, vários membros do Parlamento sueco o indicaram para o Prêmio Nobel da Paz.

O grande poeta turco Nazim Hikmet, que foi preso por ser comunista, escreveu em uma carta de seu exílio em Moscou: "Estou cheio de amor e admiração por meu país e meu povo, mas também cheio de desespero".

Os escritores turcos muitas vezes acham difícil explicar seus sentimentos mistos. Eu compartilho o amor e o sofrimento de Hikmet, seu afeto pela Turquia e sua decepção com o ritmo lento de sua democratização e os fracassos de nosso país em apoiar a livre expressão.

No entanto, também acredito no poder das conexões. Uma parte de mim quer dizer "vamos não nos desconectar".

É uma luta constante. Na verdade, como escreveu Paul Auster, "a história não está nas palavras; está na luta".

Texto Anterior | Próximo Texto | Índice | Comunicar Erros


Copyright Empresa Folha da Manhã S/A. Todos os direitos reservados. É proibida a reprodução do conteúdo desta página em qualquer meio de comunicação, eletrônico ou impresso, sem autorização escrita da Folhapress.