São Paulo, segunda-feira, 01 de novembro de 2010

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Dois povos em lados contrários

Por ALAN COWELL
PARIS - Se há uma qualidade que une a França à Grã-Bretanha é o histórico de divergências, beirando o escárnio mútuo.
De modo que foi instrutivo observar as reações em ambos os lados do Canal da Mancha ao mal-estar econômico europeu.
Diante da possibilidade de só poderem se aposentar aos 62 anos, milhões de franceses foram às ruas.
Já os britânicos mal piscaram ao serem confrontados com medidas que levarão não só a uma aposentadoria mais tardia mas também a um corte de 19% nos gastos públicos, à demissão de quase meio milhão de funcionários públicos, a drásticas reduções nos programas sociais e a cinco anos sombrios de austeridade.
É claro que isso pode mudar, como ocorreu no final da década de 1970, quando uma geração britânica anterior passou pelo chamado "inverno da insatisfação". As greves na época eram tão disseminadas que o lixo se amontoava diante das casas, e os responsáveis por cemitérios cogitaram sepultamentos coletivos no mar (os coveiros haviam parado).
Mas, depois disso, os sindicatos perderam força durante o governo conservador de Margaret Thatcher, e o apetite por lutas coletivas foi aplacado.
"Os franceses tendem a gostar de se manifestar", disse a ministra francesa das Finanças, Christine Lagarde, ao comparar os reflexos nacionais da França e da Grã-Bretanha.
"O que está em jogo aqui não é a idade de aposentadoria, ou empregos para estudantes, mas a própria natureza do poder neste país", afirmou Lucy Wadham, romancista e blogueira britânica radicada na França.
O que não significa que os recentes protestos tenham parentesco com as barricadas revolucionárias de 1968: agora se trata de uma luta contra o inevitável momento em que décadas de benefícios cumulativos -jornadas semanais de trabalho curtas, férias longas, direito a saúde pública e aposentadoria aos 60 anos- começarão a se perder.
"O problema da França é que, por muito tempo, a economia foi gerida como uma espécie de clube de emprego para trabalhadores franceses", disse em editorial a revista conservadora britânica "The Spectator".
Enquanto os britânicos creem em "liberdade em relação ao governo", prosseguia o editorial, os franceses "ainda gostam do Estado grande e chiam com a perspectiva de serem tirados das suas tetas".
Os franceses também pagam uma mensalidade mais alta no "clube" e esperam benefícios compatíveis. Uma aposentadoria na França pode chegar a 75% do salário da ativa, enquanto para os britânicos é de, no máximo, 40%.
É claro que os britânicos também protestam, como foi o caso nas violentas manifestações contra a "poll tax" [imposto cobrado por pessoa, com alíquota única] de Thatcher em 1990. Em 2000, protestos de caminhoneiros deixaram o país inteiro sem combustível.
Agora os tempos são outros. "Há uma crescente amargura e ira na Inglaterra", disse Tariq Ali, outrora um inflamado ativista nas barricadas, em um comentário no site do jornal "The Guardian". "A epidemia francesa pode se espalhar, mas nada irá acontecer a partir de cima. Jovens e velhos lutaram contra Thatcher e perderam. Seus sucessores do Novo Trabalhismo asseguraram que as derrotas que ela infligiu fossem institucionalizadas."
Pode haver também a sensação, como gostam de insistir os trabalhistas da velha-guarda, de que os conservadores estão preparando velhos truques para beneficiar os ricos e pisotear os pobres. Quem está se ressentindo das medidas, argumentam muitos economistas, são os que têm menos acesso a privilégios da elite.
"Temos visto as pessoas celebrando os maiores cortes de gastos públicos de que se tem lembrança", disse Alan Johnson, porta-voz de finanças do trabalhismo, no plenário do Parlamento. "Para alguns membros do outro lado, esse é o seu objetivo ideológico. Nem todos, mas muitos deles entraram na política para isso."
Se a Grã-Bretanha for tomada pelos protestos, haverá um subtexto mais agudo de luta de classes do que de solidariedade. A sociedade britânica é mais dividida do que a francesa. A riqueza é mais ostensiva; a pobreza é mais visível. Os britânicos aprenderam a se acotovelar na busca por vantagens individuais, enquanto os franceses se orgulham da sua concórdia mais ampla.
"O confronto social é parte da nossa democracia", disse o primeiro-ministro François Fillon, "mas o consenso social também é".
Evidentemente, há um caráter estoico inerente à Grã-Bretanha, de resistência às adversidades, como na Segunda Guerra Mundial.
"Os britânicos não fazem mais greves e, certamente, não saem às ruas do mesmo jeito que nossos confrades no continente. Ou será que isso está prestes a mudar?", escreveu o colunista Mehdi Hasan na publicação esquerdista "New Statesman". "Agora somos uma nação dividida. O machado caiu. A sangria começou."


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