São Paulo, segunda-feira, 06 de setembro de 2010

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TENDÊNCIAS MUNDIAIS

Um nó inca que ninguém consegue desatar

Segredos de uma "escrita perdida" continuam desconhecidos

Por SIMON ROMERO
SAN CRISTÓBAL DE RAPAZ, Peru - O isolamento desta aldeia andina, 4.000 m acima do nível do mar, permitiu que guardasse um duradouro segredo arqueológico: uma coleção de "khipus", crípticos nós de tecido que podem explicar como os incas -ao contrário de seus contemporâneos do Império Otomano ou da dinastia Ming na China- governavam um império tão vasto e complexo sem uma linguagem escrita.
Arqueólogos dizem que os incas usavam os "khipus", tranças feitas com lã de lhama ou alpaca, como uma alternativa à escrita. A prática pode ter permitido que eles compartilhassem informações numa área que vai do atual sul da Colômbia ao norte do Chile.
Supõe-se que apenas cerca de 600 "khipus" tenham sobrevivido. Colecionadores retiraram vários deles do Peru décadas atrás, inclusive um lote com cerca de 300, mantido no Museu Etnológico de Berlim. Acredita-se que a maioria tenha sido destruída depois que as autoridades espanholas decretaram que as peças eram objeto de idolatria, em 1583.
Mas Rapaz, onde cerca de 500 pessoas subsistem do pastoreio de lhama e gado e de cultivos familiares de produtos como o centeio, oferece um raro vislumbre do papel dos "khipus" durante o Império Inca e bem depois. A aldeia abriga uma das últimas coleções de "khipus" ainda em uso ritual.
"Sinto meus ancestrais conversando comigo quando olho nosso 'khipu'", disse Marcelina Gallardo, 48, que vive com seus filhos na "puna", a região andina acima do limite máximo de crescimento das árvores. "O 'khipu' é uma joia da nossa vida neste lugar."
Poucas das chamadas escritas perdidas do mundo se provaram tão indecifráveis quanto os "khipus", dizem acadêmicos, e desde os primórdios da era colonial isso assombra os cronistas. Pesquisadores da Universidade Harvard têm usado bancos de dados e modelos matemáticos em recentes esforços para entender o "khipu" (pronuncia-se "quípu"), que significa "nó" em quéchua, a língua inca ainda falada por milhões de pessoas.
Mesmo aqui ninguém afirma entender o conhecimento codificado nos "khipus" da aldeia, que ficam guardados numa casa cerimonial chamada Kaha Wayi. As intrincadas tranças são decoradas com nós e estatuetas, algumas das quais carregando minúsculos sacos de folha de coca.
A capacidade dos moradores de decifrar os seus "khipus" parece ter sumido junto com anciões que morreram há muito tempo. Testes tendem a mostrar que os "khipus" de Rapaz são bem posteriores à conquista espanhola, e especialistas dizem que eles são muito diferentes de "khipus" desenvolvidos pela civilização inca.
Ainda hoje, os rapacinos, como são chamados os locais, conduzem rituais na Kaha Wayi ao lado dos seus "khipus", conforme a descrição feita por Frank Salomon, antropólogo da Universidade de Wisconsin que liderou um recente projeto para ajudar Rapaz a proteger seus "khipus" em um invólucro resistente a terremotos.
Uma tradição exige que os moradores murmurem invocações durante a noite gélida em direção às montanhas sagradas que cercam Rapaz, pedindo às nuvens que lancem chuva. Eles então examinam a queima da gordura de lhama e interpretam a forma como as fagulhas voam, antes de sacrificar um porquinho-da-índia.
A sobrevivência desses rituais, e dos "khipus" de Rapaz, é um testemunho da resiliência da aldeia ao longo de séculos de dificuldades. "Eles devem permanecer aqui, porque pertencem à nossa gente", disse Fidencio Alejo Falcón, 42. "Jamais os entregaremos."


Colaborou Andrea Zárate, de Lima



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