São Paulo, quinta-feira, 10 de novembro de 2011

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Primavera Árabe sem intelectuais

Vozes árabes relevantes se calam sobre as revoltas

Muitas ideias para o futuro estão brotando das ruas

ROBERT F. WORTH

ANÁLISE

Quando o poeta sírio Adonis, um dos mais renomados literatos árabes, dirigiu uma carta aberta ao presidente sírio, Bashar Assad, estava armado o cenário para um momento familiar em revoluções passadas: um herói intelectual confrontando um governante opressivo, e expressando de forma eloquente o descontentamento de uma nação.
Só que Adonis -que vive exilado na França- frustrou amargamente muitos sírios. Sua carta, em meados de junho, fazia algumas críticas, mas também denigria o movimento de protesto que agita o país desde março, e nem mesmo reconhecia a brutal repressão que matou centenas de sírios. Vendo agora, o incidente ilustra o abismo notável entre intelectuais estabelecidos do mundo árabe -muitos deles, como Adonis, ex-radicais- e os jovens, majoritariamente anônimos, que comandaram os protestos da Primavera Árabe.
Isso é em parte uma medida das pressões que os intelectuais árabes enfrentam nas últimas décadas, espremidos entre a violenta repressão estatal e a sufocante ortodoxia islâmica. Muitos foram co-optados por seus governos (ou pelo dinheiro do petróleo do golfo Pérsico), ou então se viram forçados ao exílio, onde perderam contato com a realidade vivida pelas suas sociedades. Os que ficaram com frequência aplaudiram as revoltas do último ano, e inclusive marcharam ao lado das multidões.
Mas não as comandaram, e muitas vezes pareciam perplexos e confusos com um movimento que eles não conseguiram prever.
Além disso, o papel do intelectual pode estar se reduzindo ao de microblogueiro. Para alguns, tudo bem. "Não acho que haja a necessidade de intelectuais para comandar qualquer revolução", diz o poeta e romancista iraquiano Sinan Antoon, que leciona na Universidade de Nova York e tem escrito sobre a Primavera Árabe. "Não é mais um movimento a ser liderado por heróis."
Essa crença pode ser posta à prova. Porta-estandartes intelectuais moldaram quase todas as revoluções modernas desde [a independência dos EUA em] 1776. Nessas revoltas, pensadores e ideólogos -de Thomas Paine a Václav Havel, passando por Lênin e Mao- ajudaram a forjar uma visão unificadora e se tornaram símbolos das maiores aspirações populares.
Na Síria, a falta de liderança na revolta -tão útil para evitar a repressão- já se torna um ônus. "Ninguém quer ser acusado de sequestrar a revolução", diz o filósofo sírio Sadik Jalal al Azm. "Esse medo excessivo está se tornando um obstáculo."
Até certo ponto, o silêncio dos intelectuais na atual rebelião é uma resposta deliberada à vazia retórica revolucionária de gerações anteriores. O movimento nacionalista árabe surgiu nas décadas de 1930 e 40 com jovens idealistas que esperavam livrar a região do seu passado colonial, do atraso e do tribalismo. Mas o Partido Baath e suas vagas ideias logo seriam dominados e destilados em slogans por oficiais militares na Síria e no Iraque, cuja liderança "revolucionária" era na verdade apenas o velho tribalismo e a autocracia sob uma roupagem diferente.
O nacionalismo árabe atingiu seu ponto mais alto -ou baixo- na figura do coronel Muammar Gaddafi, que se via como um intelectual divino, publicando sua própria ficção e impondo sua delirante Terceira Teoria Universal ao desafortunado povo líbio. Também no Egito o socialismo árabe logo se tornou pouco mais que um pretexto para a ditadura e para políticas imprudentes dentro e fora do país.
Os manifestantes que lideraram a Primavera Árabe estavam cansados da obsoleta retórica internacionalista dos seus antecessores. Eles preferiram focar nos fracassos da sua própria sociedade.
"Anteriormente, tudo se reduzia ao exterior: se você é pró ou antiamericano, qual é o papel de Israel, e assim por diante", diz Hazem Saghieh, editor de política do jornal árabe "Al Hayat", de Londres. "Esta revolução é completamente diferente."
A guinada para os direitos civis e a democracia doméstica não surgiu do nada. Durante a curta "Primavera de Damasco", uma década atrás, intelectuais sírios assinaram a Declaração dos 99, um apelo por mais abertura e mais direitos. Muitos foram posteriormente presos. A bravura e persistência desses intelectuais -e de outros como eles no Egito- podem ter discretamente preparado o terreno para a onda de rebeliões deste ano.
Mas suas vozes muitas vezes não foram ouvidas, porque a sua linguagem laica tinha pouca ressonância em sociedades onde o islã político estava se tornando dominante. Os reformistas islâmicos não se saíram muito melhor. O acadêmico egípcio Hassan Hanafi começou na década de 1980 a propor uma "esquerda islâmica". Foi taxado de herege.
Nem todos os intelectuais árabes caíram nessas armadilhas. O romancista egípcio Alaa al Aswany tornou-se um crítico feroz do governo de Hosni Mubarak nos últimos anos, protegido por sua celebridade do risco de ser preso. Ele esteve entre os primeiros escritores a falarem à multidão de manifestantes em janeiro na praça Tahrir, e em março teve um desempenho arrasador num debate pela TV com Ahmed Shafiq, primeiro-ministro nomeado por Mubarak. No dia seguinte, o conselho militar que governa o Egito demitiu Shafiq, e muitos creditam Aswany por esse feito.
É possível que as plataformas ideológicas de revoluções anteriores estejam obsoletas, dada a velocidade das comunicações e a agitação de novas perspectivas. "É algo muito fluido, muito rápido, muito complexo", diz Peter Harling, analista do International Crisis Group. "É difícil chegar a um paradigma. As pessoas estão procurando artigos curtos que iluminem alguns aspectos do que elas estão atravessando, e não teorias grandiosas."
Se alguma ideia decorreu da Primavera Árabe, ela se relaciona ao "modelo turco" -a esperança, tantas vezes ouvida, de que a mistura turca entre uma ideologia moderadamente islâmica e um governo democrático pode inspirar um sucesso semelhante em terras árabes. Mas esta analogia é algo fácil, e pode resultar em decepção.
A experiência turca é difícil de replicar, em parte porque o país passou por uma revolução contra as tradições, enquanto os intelectuais árabes do século 20 apenas falaram a respeito.
A partir do começo da década de 1920, Mustafa Kemal Atatürk, o grande autocrata da Turquia, reformou o sistema educacional do país. Ele aboliu o califado e eviscerou o sistema judicial turco, instituindo uma rígida separação entre Estado e religião. As primeiras eleições ocorreram em 1946, e só após algumas décadas de luta (e vários golpes de Estado) a Turquia passou a ser elogiada por seus modos democráticos.
Sem essa penosa preparação, os novos revolucionários do mundo árabe podem repetir a história, mesmo que de fato a estudem. Após a morte do ditador Gaddafi, algumas vozes céticas podiam ser ouvidas em meio ao alarido de mensagens triunfais na internet de sites e redes sociais árabes.
"Que o assassinato de Gaddafi seja uma lição tanto para os revolucionários quanto para os governantes", escreveu um usuário árabe do Twitter.
"E que os revolucionários de todos os lugares do mundo se lembrem de que Gaddafi chegou ao poder fazendo a sua própria revolução, 40 anos atrás."


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