São Paulo, segunda-feira, 12 de abril de 2010

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DIÁRIO DE MOGADÍCIO

Rádio tenta se manter erguida em meio às ruínas da Somália

Por JEFFREY GETTLEMAN

MOGADÍCIO, Somália - Uma jornalista com a cabeça recoberta por um véu (mas que também traja uma saia justa de brim) está sentada em um estúdio à prova de som, com um microfone diante do rosto. "Salaam aleikum", diz ela, cumprimentando um homem que telefonou para a rádio.
"Sim, alô", diz o homem em tom ansioso. "Quero falar sobre os piratas. Esses caras não estando sendo tratados com justiça."
Em uma cabine ao lado, produtores de jornalismo prepararam a pauta diária de notícias de anarquia: três corpos encontrados no mercado Bakaro; o presidente Sheik Sharif prega a reconciliação em uma mesquita; estudiosos islâmicos opinam sobre o fato de o grupo insurgente Al Shabab decepar as mãos de pessoas; o mercado de animais domésticos está em alta, e, graças a Deus, os preços das cabras estão subindo.
É um dia como outro qualquer na rádio Mogadício, a única estação de rádio relativamente livre do centro-sul da Somália e onde jornalistas podem divulgar o que quiserem -sem medo de serem decapitados.
As antenas de 27 metros da estação, que se destacam em meio aos destroços que cobrem o bairro, se converteram literalmente em um farol de liberdade para repórteres livres de toda a Somália que foram expulsos de seus empregos por ordem de insurgentes islâmicos radicais.
Os cerca de cem funcionários da rádio são homens e mulheres marcados, porque os insurgentes os associam ao governo. Os jornalistas comem e dormem na sede da emissora, que integra um complexo controlado pelo governo de transição e situado em um bairro de relevo alto. A maioria recebe algumas centenas de dólares por mês.
Alguns, como o correspondente político sênior da rádio, Abdi Aziz Mahamoud Africa, percorrem o local trajando jeans e suéteres em estilo ocidental que os fariam ser mortos se os usassem em outras partes da cidade.
A Somália tornou-se um dos lugares mais perigosos do mundo para a prática do jornalismo; mais de 20 jornalistas foram assassinados no país nos últimos quatro anos. "A gente sente falta deles", disse Africa, falando de seus colegas mortos.
Ele trabalhava em outra estação de rádio da capital somali (a cidade tem mais de dez), mas decidiu transferir-se à rádio Mogadício após combatentes do Al Shabab terem visitado a emissora e ameaçado matar os repórteres se não transmitissem notícias favoráveis ao grupo.
Em uma cidade onde as saraivadas implacáveis de armas de pequeno calibre já reduziram praticamente todos os monumentos, bibliotecas e pontos de destaque a pilhas de blocos de concreto, a rádio Mogadício talvez seja um dos últimos repositórios remanescentes de história somali.
Numa sala nos fundos da emissora, fitas de rolo estão empilhadas do chão até o teto. Estão cuidadosamente etiquetadas: discursos antigos, canções culturais, canções patrióticas, entrevistas e outras recordações de uma cultura em processo de desaparecimento.
Cada semana, a rádio tira o pó de algumas fitas e as coloca para serem ouvidas. "Este lugar é um tesouro cultural", disse Mukhtar Ainashe, assessor presidencial.


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