São Paulo, segunda-feira, 13 de setembro de 2010

Texto Anterior | Próximo Texto | Índice | Comunicar Erros

INTELIGÊNCIA/VINCENT HUGEUX

A inconveniência do outro

Tirando os ciganos de cena, para alimentar a mídia e conquistar votos Paris

O bode-expiatório -esse anti-herói indestrutível cuja resistência desafia o tempo, as tendências e a geografia- assombra a paisagem política hoje em todo o mundo, como já havia feito muitas vezes. Os governos, mesmo os democraticamente eleitos, que perdem impulso e imaginação tendem a atribuir seus fracassos àqueles cujas origem, cor da pele, religião ou estilo de vida parecem pôr em risco a coesão nacional.
De Paris a Tóquio, passando pelo Arizona, a alteridade é aplaudida enquanto o Outro é visto com desconfiança. Vejam as expulsões de ciganos, os chamados romanis, para a Romênia ou a Bulgária, a perturbadora novela oferecida neste verão pela França, terra da liberdade, igualdade e fraternidade.
No inconsciente coletivo, os romanis personificam o pária perfeito. Mesmo quando sedentários, eles continuam sendo vagantes sem terra e sem fronteiras, condenados a arrastar mitos e fantasias em sua trilha.
Assim que um grupo de três meninas morenas, de cabelos escuros e com vestidos floridos, entra em um metrô de Paris para mendigar ou gritar um antigo lamento, a tensão cresce no vagão. Eu sei: sinto a mesma coisa às vezes. As mulheres agarram suas bolsas enquanto os homens ajeitam as carteiras e os celulares no fundo dos bolsos.
Lá na aldeia onde cresci, os ciganos, que se extenuavam em tentativas principalmente infrutíferas de vender capachos de porta em porta, despertavam uma mistura de medo e hostilidade. Nós temíamos a torrente de profecias obscuras que suas mulheres, avatares modernos das bruxas de muito tempo atrás, despejavam sobre aqueles que lhes davam as costas com desprezo.
Será que a França do presidente Nicolas Sarkozy, filho de um imigrante húngaro, está derivando imperceptivelmente para o racismo de Estado? Se a imprensa internacional servir de guia, para não falar nas condenações de esquerdistas, ativistas organizados, intelectuais proeminentes e líderes religiosos, a pergunta é válida.
O uso do termo "deportação" e as referências históricas tendem a reviver o espectro do Holocausto orquestrado pela Alemanha nazista nos anos 1940. É uma analogia extrema, portanto inepta, que é alimentada por um trauma histórico indelével. Pois, se os judeus foram o principal alvo da política de extermínio de Hitler, ela também dizimou as comunidades ciganas da Europa.
É absurdo atribuir intenções fascistas ao Executivo francês, mas o seria igualmente negar o impacto da medida populista -e, portanto, geradora de votos- ilustrada pelo endurecimento do governo, amplamente inspirado no modelo adotado na Itália por Silvio Berlusconi e seus aliados.
Em substância, não há nada realmente novo. Todos os anos entre 7.800 e 10 mil romanis são escoltados -para usar o eufemismo aceito- até a fronteira francesa, e muitos deles voltam rapidamente. Mas a forma mudou: enquanto Paris costumava levá-los às escondidas, hoje as expulsões são cobertas pela mídia, ou mesmo encenadas em seu benefício.
Para colocar claramente, não é mais uma questão de efetuar expulsões vergonhosas, mas de elogiar a "verdadeira" França, aquela esgotada, sofrida e desempregada, em contraste com os parasitas que de repente surgiram de algum lugar e forasteiros que tiram vantagem do sistema.
Por que eles? Por que agora? No meio de um verão terrível, estragado pela recessão econômica, à véspera de um outono cheio de problemas sociais turbulentos, Sarkozy tentou criar uma distração de segurança.
Ele também espera reconquistar os eleitores da margem, que acham atraentes os slogans simplistas de uma extrema-direita abertamente xenófoba, e captar a oposição socialista, dividida entre seu catecismo humanista e a necessidade de firmeza.
Seria ingênuo ignorar o fato de que líderes de bandos dirigem o mercado da mendicância como um sindicato criminoso e confiscam a maior parte do dinheiro de menores devidamente treinados nas técnicas de bater carteiras. Mas permanece o fato de que a maioria dos 10 a 12 milhões de romanis da União Europeia, dos quais cerca de 15 mil estão na França, só desejam encontrar um lugar decente para seus trailers, um emprego e uma escola para seus filhos.
De Paris a Bucareste, escuta-se o mesmo refrão: "Essa gente não quer se integrar". Mas o que sabemos nós? O que fizemos para ajudá-los a integrar-se? Sem querer ajudar cidadãos de segunda classe, as autoridades romenas investiram apenas uma pequena parte dos créditos concedidos para esse objetivo pela União Europeia.
Todos concordam: a questão dos romanis só pode ser enfrentada em escala europeia, com todos os 27 países-membros trabalhando estreitamente com os países de origem. E o processo deve ser iniciado o mais breve possível: os anti-heróis também estão cansados. Em tempos econômicos difíceis, as minorias são mais vulneráveis. Romanis em um acampamento em La Courneuve, perto de Paris


Vincent Hugeux, repórter sênior da revista francesa "L'Express", é autor de "Les sorciers blancs: Enquête sur les faux amis français de l'Afrique".

Envie comentários para intelligence@nytimes.com




Texto Anterior: Lente: Céticos na igreja da tecnologia

Próximo Texto: Tendências Mundiais
Insatisfação com médicos causa violência na China

Índice | Comunicar Erros


Copyright Empresa Folha da Manhã S/A. Todos os direitos reservados. É proibida a reprodução do conteúdo desta página em qualquer meio de comunicação, eletrônico ou impresso, sem autorização escrita da Folhapress.