São Paulo, segunda-feira, 13 de dezembro de 2010

Texto Anterior | Próximo Texto | Índice | Comunicar Erros

INTELIGÊNCIA/ROGER COHEN

Um mundo que poderia ter sido


Pensar em uma história hipotética é algo tentador; "e se o arquiduque Francisco Ferdinando não tivesse sido morto?"

Londres
O romancista japonês Haruki Murakami escreve livros em que o cotidiano e o fantástico se fundem de forma estranha. Lendo um ensaio dele outro dia, chamou minha atenção a seguinte passagem:
"Chamemos o mundo em que vivemos agora de Realidade A, e de Realidade B o mundo que poderíamos ter tido se o 11 de Setembro nunca houvesse ocorrido. Então, não podemos deixar de notar que o mundo da Realidade B parece ser mais real e mais racional que o mundo da Realidade A. Pondo em outros termos, estamos vivendo em um mundo que tem um grau de realidade ainda menor que o mundo irreal. Como poderíamos chamar isso senão 'caos'?"
Essa sensação de caos, descontrole ou estranheza de fato parece intensa hoje em dia. A nação mais poderosa do mundo dedica bilhões de dólares e todo o seu poderio acumulado para caçar um punhado de jihadistas, comandados por um homem que pode ou não estar vivo e que pode ou não morar numa caverna, num lugar chamado Waziristão.
Uma esquisitice em cascata domina também o sistema financeiro, seja em Nova York ou Dublin. Somas inconcebíveis são usadas para evitar uma desintegração ainda maior onde o dinheiro perde o valor. Stálin notou que uma morte é uma tragédia, mas 1 milhão delas se tornam estatística. Resgates financeiros gigantescos se tornaram obras de uma magia estatística, vagamente ameaçadores, mas intangíveis.
Uma organização chamada WikiLeaks, sem domicílio fixo, publica mais de 250 mil comunicações diplomáticas privadas ou secretas dos EUA, às quais um soldado americano ordinário teve acesso, em nome do direito de as pessoas saberem o que os governos escondem. A América fica indignada, mas praticamente impotente, o imperador está nu para que todos o vejam no Waziristão.
Mas será que a Realidade B, sem o 11 de Setembro, se Mohammed Atta e seus cúmplices tivessem sido impedidos de embarcarem nos aviões que transformariam em mísseis, teria sido mais real, mais racional?
Afinal de contas, ninguém teria ouvido falar do Waziristão e que tais. A América, sem o ônus de duas guerras, teria evitado o colapso financeiro de 2008. Os aeroportos dos EUA não estariam submetendo rotineiramente os viajantes a um estado de nudez para agentes de segurança invisíveis. O fim da história, para usar a frase de Francis Fukuyama no pós-Guerra Fria, não teria sido tão espetacularmente abortado.
Como é tentadora -e assombrosa- a história hipotética! Sempre penso no que teria acontecido em junho de 2009, quando 2 milhões de iranianos tomaram as ruas para protestar contra o roubo na eleição presidencial, e a República Islâmica ficou no fio da navalha. E se aquela multidão, na qual eu estava, tivesse investido contra o palácio presidencial? E se a bala que desencadeou a Primeira Guerra Mundial ao matar o arquiduque Francisco Ferdinando, da Áustria, em junho de 1914 em Sarajevo, tivesse errado o alvo? E se?
Claro que esse é, afinal, o domínio de Murakami -a ficção. Se algo não tivesse acontecido, outra coisa presumivelmente ocorreria, e assim por diante. Precisamos da ficção para entender as hipnotizantes possibilidades da realidade, pois, como notou o romancista israelense Amos Oz, "às vezes, os fatos ameaçam a verdade".
O caos, de fato, nos dominou. Mas não tenho certeza de que a Realidade B teria sido mais racional que a Realidade A. Minha sensação é de que tendências mais profundas são inexoráveis, qualquer que seja a expressão particular que elas encontrem.
Em outras palavras, a despeito do que ocorreu ou não num dia claro de setembro, os governos estavam ficando mais fracos em 2001 antes do avanço da tecnologia e das suas redes, a América estava ficando mais fraca antes da ascensão da China e de outras potências emergentes, e o sistema financeiro global estava se tornando cada vez mais vulnerável por conta da própria velocidade e interconexão. Poderíamos ter meramente chegado a um lugar similar por uma rota diferente.
O mundo dá voltas. Como também escreveu Oz: "Quando meu pai era um jovem em Vilna, todos os muros da Europa diziam: 'Judeus, vão para a Palestina'. Cinquenta anos depois, quando ele voltou à Europa para uma visita, todos os muros gritavam: 'Judeus, fora da Palestina'."
É o caso de rir. É o caso de chorar. Ou é o caso de fazer as duas coisas e criar uma Realidade C para explicar tudo isso.


Envie comentários para
intelligence@nytimes.com



Texto Anterior: Tendências Mundiais
Iraquianos têm prejuízo com saída dos EUA

Próximo Texto: Análise do noticiário: EUA se envolvem em diplomacia, mas estão prontos para o Plano B
Índice | Comunicar Erros



Copyright Empresa Folha da Manhã S/A. Todos os direitos reservados. É proibida a reprodução do conteúdo desta página em qualquer meio de comunicação, eletrônico ou impresso, sem autorização escrita da Folhapress.