São Paulo, segunda-feira, 18 de abril de 2011

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INTELIGÊNCIA/ROGER COHEN

Uma nova era de ambiguidade

Londres
Grande parte da história alemã no pós-guerra consistiu em um exercício de estabelecer uma previsibilidade. O grande temor era de outro "Sonderweg", de que o país se desviasse por algum caminho delirante, sob o comando de um líder delirante, rumo a um segundo encontro com o cataclismo. A grande preocupação era tranquilizar os seus aliados -principalmente os Estados Unidos e a França. Daí a obsessão de Konrad Adenauer, primeiro chanceler (premiê) da Alemanha Ocidental, em ancorar a nação às comunidades europeia e atlântica. Para a metade ocidental da Alemanha dividida, a União Europeia e a Otan representavam o caminho para a reabilitação, antes de se tornarem o caminho para a reunificação em 1990. Elas foram instrumentos do renascimento espiritual alemão; mereciam uma lealdade especial.
Tudo isso, ao que parece, acabou. Nas últimas semanas, a Alemanha, pela primeira vez, se colocou simultaneamente contra os EUA e a França, ao se recusar a apoiar a resolução da ONU que autorizou uma ação militar para proteger os civis na Líbia. O país se absteve -junto com Brasil, Rússia, Índia e China. Serão essas nações emergentes, então, os novos companheiros de jornada da potência econômica dominante na Europa?
Angela Merkel, a chanceler alemã, tornou-se porta-voz dos receios de seu laborioso povo a respeito dos repetidos resgates financeiros das economias mais débeis da União Europeia -sendo Portugal o caso mais recente. A Europa, outrora salvadora da Alemanha, agora parece ser considerada em Berlim acima de tudo como um ônus. Seus parceiros da zona do euro estão descontentes. Ana Palacio, ex-ministra espanhola de Relações Exteriores, disse ao jornal "Financial Times" que "a Alemanha cheira a hegemonia, mas se veste como contabilista". Engula essa, Frau Bundeskanzlerin!
Eu acho que a Alemanha de Merkel cometeu alguns erros graves, mas, antes de chegar a eles, três observações precisam ser feitas. Em primeiro lugar, a Alemanha se sente desconfortável com seu poderio e seu papel -insegura sobre como usá-los-, mas aprendeu as lições da história e não está se metendo em nenhum "Sonderweg". Segundo, apesar de toda a avareza alemã diante da crise do euro, ela percebe que o colapso da moeda única seria um desastre absoluto e deu a maior de todas as contribuições aos multibilionários pacotes de ajuda aos gregos, irlandeses e portugueses. Em terceiro lugar, o vigor da economia alemã reflete imensos esforços e sacrifícios feitos desde a unificação, há 21 anos, e reformas significativas no Estado do bem-estar social, algo em que a França, para não falar da Grécia, ficou para trás. Então, é fácil entender por que os alemães têm ressentimentos em relação a seus parceiros mais claudicantes.
Isso posto, a Alemanha tem se comportado como uma criança mimada, ingrata e mesquinha. É absurdo que Guido Westerwelle, o ministro das Relações Exteriores, proclame que "o mundo sabe que pode confiar em nós", e que o país busque uma vaga permanente no Conselho de Segurança da ONU, mas, ao mesmo tempo, despreze os seus maiores aliados. A Otan, que agora controla a operação militar da Líbia, não é uma aliança na qual você pode se incluir quando convém -especialmente quando já foi o maior beneficiário dela. Merkel e Westerwelle insistem que desejam tanto quanto qualquer um ver Muammar Gaddafi pelas costas e condenaram duramente os ataques dele contra o povo líbio, mas essas são meras palavras -aliás, incoerentes. Na hora de agir em relação à Líbia, a Alemanha sumiu. Foi reprovada no seu próprio teste de previsibilidade e desagradou aos EUA e à França.
Sim, o antimilitarismo sempre foi uma forte corrente desde 1945. Sim, Merkel tem enfrentado importantes eleições regionais. Mas a recusa em ficar junto aos seus aliados para impedir um potencial massacre em Benghazi representa um ponto baixo na diplomacia alemã do pós-guerra. Isso não significa que a Alemanha ache que seu futuro está com os países do Bric. Significa que a Alemanha entrou em uma nova era de ambiguidade e cálculo nacionalista.
O que é mais chocante para mim, uma década depois de ter vivido na Alemanha, é como o idealismo europeu definhou. Ninguém mais na Alemanha fala em "Estados Unidos da Europa", como o então ministro das Relações Exteriores, Joschka Fischer, fazia naquela época. Ninguém tem idéias interessantes sobre integração europeia. A Europa, somos tentados a dizer, já serviu ao seu propósito para a Alemanha.
O custo dessa atitude é elevado. A tentativa europeia de forjar uma política externa unida está novamente em farrapos, com a França e a Alemanha divididas a respeito da Líbia. O ressentimento europeu com a Alemanha está crescendo. Desde a sua fundação, a Europa só avançou quando se impôs novas metas de unidade. Tendo a Alemanha outras preocupações -ao flertar com Moscou, com o pacifismo e o provincianismo-, é seguro dizer que a ideia de Europa sofrerá. O euro foi um instrumento político unificador. Se a Alemanha hoje pensa diferente, será que o euro terá um futuro assegurado?

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