São Paulo, segunda-feira, 18 de outubro de 2010

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INTELIGÊNCIA/ROGER COHEN

Louvemos os comunistas

Embora cruel, governo chinês contribui para a estabilidade global

Londres
É possível argumentar que o Prêmio Nobel da Paz não deveria ter ido para um dissidente importante, o escritor e militante encarcerado Liu Xiaobo, e sim para o Partido Comunista Chinês. O argumento se baseia no cinismo da "Realpolitik", mas não é infundado.
O PC Chinês, ao longo das últimas três décadas, levou quase 20% da humanidade da penúria e da perseguição para uma prosperidade que, embora extremamente desigual, seria inimaginável quando Deng Xiaoping mudou de rumo em 1978, rejeitando uma revolução proletária que fazia o povo passar fome.
Nesse período, a China entronizou a estabilidade -a sua e a do mundo- como um valor inalienável.
A instabilidade (leia-se guerra) é incompatível com a meta do Partido de guiar a China para o status de país desenvolvido até meados do século.
Por isso, a China demonstra moderação a respeito de Taiwan e das grandes guarnições militares dos EUA na Ásia, sabendo que elas tranquilizam seus vizinhos e contrabalançam o turbulento impacto da ascensão chinesa.
O PC levou a China do isolamento a um papel central na economia global.
Seu incansável foco no crescimento estimulou uma demanda essencial para o desenvolvimento, e se provou crucial para tirar o mundo do colapso financeiro de 2008.
Só os empréstimos fornecidos pela China permitem que o deficit dos EUA seja sustentável, e só o "Made in China" garante aos consumidores americanos os dividendos do Walmart.
A simbiose entre EUA e China, que parece complexa demais para ser desfeita, é provavelmente o principal fator individual por trás da paz global atualmente. Tal codependência não existia no mundo bipolar da Guerra Fria.
E nunca antes a potência dominante do mundo precisou tanto daquela que possivelmente a sucederá. Esse fio que estabelece a relação mais importante do planeta sugere que as oscilações de poder no século 21 podem ser menos violentas que no século 20.
Um olhar para o papel que as guerras tiveram na rápida ascensão americana indica quão excepcionalmente pacífica tem sido a ascensão chinesa.
Favorecendo a não-intervenção, perseguindo os seus interesses econômicos com uma intensidade sistemática (particularmente na aquisição global de matérias-primas), reagindo energicamente -ainda que tarde- à indignação popular com as condições trabalhistas e ambientais, o PC Chinês provavelmente aplicou o regime autoritário com maior inteligência e flexibilidade do que qualquer outra ditadura na história.
Ao fazer isso, ofereceu ao seu povo benefícios inimagináveis. Isso, por sua vez, promove a paz no mundo.
Então, sim, eu diria que há certos argumentos pela concessão do Prêmio Nobel da Paz ao Partido. Esses são feitos essenciais.
Mas é claro que há outro lado da história, e não é só a brutalidade da repressão às manifestações de 1989 na praça Tiananmen. Nada -nem a devastação ambiental, os direitos à propriedade individual ou a crescente desigualdade- pôde impedir o galopante progresso econômico.
Trabalhadores do mundo todo pagaram caro pelo fato de a China ter absorvido seus empregos.
O regime unipartidário depende de "limites" mantidos cruelmente. O primeiro deles proíbe qualquer contestação direta à autoridade partidária. O corajoso apelo de Liu pela liberalização política na Carta 08 -"Devemos parar a prática de ver as palavras como crimes"- levou diretamente à dura pena de 11 anos de prisão que ele recebeu por "caluniar abertamente e incitar terceiros a derrubar o poder estatal do nosso país".
Na verdade, tudo o que Liu havia feito foi proclamar a universalidade de certos valores, ao dizer que "nenhuma força pode bloquear o desejo humano por liberdade".
Ele postulou que a mordaça à imprensa, a censura à internet, a intimidação ao Judiciário, as prisões arbitrárias e a corrupção, endêmica em qualquer regime de partido único, não podem ser aceitas para sempre por uma população chinesa cada vez mais rica e sofisticada.
Suspeito que, no longo prazo, ele tenha razão, e que o PC saiba disso. Mas o regime não gosta de ser pressionado no seu programa para o desenvolvimento chinês, inteligente, ágil e obcecado pela estabilidade.
Com o tempo, a China terá mais liberdade, mas não prevejo uma democracia multipartidária. Este Prêmio Nobel é um marco importante na jornada.
A paz mundial precisa do PC Chinês, mas precisa igualmente de bravos homens como Liu para que empurrem os governantes chineses na direção de uma maior abertura. Ele deveria ser libertado de uma vez, porque seu único "crime" foi olhar sobre o horizonte.


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