São Paulo, segunda-feira, 19 de julho de 2010

Texto Anterior | Próximo Texto | Índice

CIÊNCIA & TECNOLOGIA

"Meramente humano", um conceito velho

Por ASHLEE VANCE

MOUNTAIN VIEW, Califórnia - Certa noite de primavera, Sergey Brin, cofundador do Google, se tornou parte homem, parte máquina. Cerca de 40 pessoas reunidas no campus Nasa da Universidade da Singularidade viram isso acontecer.
A quilômetros dali, Brin controlava um utensílio que consistia em uma base com rodinhas e uma tela na qual brilhava o rosto dele. O BrinBot ia de grupo em grupo, conversando com os participantes.
A cena não saíra de "Jornada nas Estrelas", mas remete a um futuro pelo qual os fundadores da Universidade da Singularidade têm apreço: a chegada da Singularidade -uma época, talvez daqui a apenas um par de décadas, em que uma inteligência superior irá dominar, e a vida assumirá uma forma alterada, fundindo-se às máquinas. A velhice e até mesmo a morte serão coisas do passado.
Algumas das pessoas mais ricas e inteligentes do Vale do Silício acreditam nisso. A Universidade da Singularidade, criada ali em 2008, representa o lado mais concreto do movimento, apresentando tecnologias promissoras aos empreendedores.
Num tom mais milenarista e provocativo, a Singularidade também oferece uma resposta moderna, quase religiosa, à Fonte da Juventude.
"Vamos transcender todas as limitações da nossa biologia", afirmou o inventor Raymond Kurzweil, um dos mais onipresentes porta-vozes da Singularidade. Ele alardeia que pretende viver centenas de anos e ressuscitar os mortos, inclusive o seu pai. "É isso que significa ser humano -ampliar quem somos."
Alguns partidários da Singularidade anteveem um futuro em que os humanos se dividirão em duas espécies: os Que Têm, que possuem inteligência superior e podem viver séculos, e os Que Não Têm, afetados por suas crenças e formas corpóreas e antiquadas.
Os críticos acham esses cenários assustadores, porque as chaves para a fase seguinte da evolução poderiam estar além do alcance da maioria das pessoas.
"A Singularidade não é a grande visão de sociedade que Lênin tinha ou que Milton Friedman poderia ter", diz o jornalista britânico Andrew Orlowski, um especialista em tecnoutopia. "São os ricos construindo um bote salva-vidas."
A partir do final de agosto, Kurzweil levará a várias partes dos Estados Unidos uma exposição multimídia para promover "Transcendent Man" ("homem transcendental"), um documentário sobre si mesmo.
Ele é também autor de best-sellers e de invenções bem-sucedidas, como os primeiros sistemas que usavam um scanner para transformar textos em fala -muito útil para cegos-, sofisticados teclados eletrônicos e softwares para reconhecimento de voz.
Sua marcha rumo à Singularidade começou por volta de 1980, quando ele percebeu que alguns elementos da tecnologia da informação melhoravam a um ritmo previsível -e exponencial.
"Com 30 passos lineares você chega a 30", costuma dizer ele em palestras. "Com 30 passos exponencialmente, você chega a 1 bilhão. O custo-benefício dos computadores melhorou 1 bilhão de vezes desde que eu era estudante. Em 25 anos, um computador tão poderoso quanto os 'smartphones' de hoje terão o tamanho de uma célula sanguínea."
Ele então construiu uma elaborada filosofia que forneceu uma espinha dorsal analítica para a Singularidade, uma ideia que já pairava nos círculos da ficção científica.
Kurzweil pressupõe que o progresso tecnológico neste século será mil vezes maior do que no século passado.
Ele escreve sobre humanos vencendo a biologia ao encherem seus corpos de criaturas em nanoescala, capazes de restaurar as células, e ao permitirem que suas mentes se liguem a computadores superinteligentes.
O computador e a internet, afirma Kurzweil, mudaram a sociedade muito mais rapidamente do que a eletricidade, o telefone ou a televisão. O próximo grande salto irá ocorrer quando setores como a medicina e a energia começarem a se mover no mesmo ritmo exponencial da tecnologia da informação.
É uma visão que alguns não acham nada persuasiva. Jonathan Huebner, médico do Centro de Guerra Aeronaval, não se convence a respeito do ritmo do progresso. Dividindo o número de inovações pelo tamanho da população mundial, argumenta, o auge da inovação ocorreu em 1873.
"A quantidade de avanço neste século não irá se sair nada bem na comparação com o século passado", diz Huebner, antes de criticar princípios da Singularidade. "Não acredito que algo como a inteligência artificial tal qual eles descrevem irá jamais aparecer."
Para Orlowski, a Singularidade é um grandioso sonho nerd-tecnológico, em que inovadores de todo tipo criam o maior de todos os botões de "reset". Ele acha que os fanáticos por tecnologia "parecem desejar um 'deus ex machina' para deixar tudo certo outra vez".


Texto Anterior: Religião no ambiente de trabalho exige tato e respeito

Próximo Texto: Espécies de chimpanzés também sabem fazer guerra
Índice



Copyright Empresa Folha da Manhã S/A. Todos os direitos reservados. É proibida a reprodução do conteúdo desta página em qualquer meio de comunicação, eletrônico ou impresso, sem autorização escrita da Folhapress.