São Paulo, segunda-feira, 23 de fevereiro de 2009

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ENSAIO

Pelo bem da evolução, o fim do darwinismo

CARL SAFINA

"Você não se importa com nada e será motivo de vergonha para você mesmo e toda sua família", disse Robert Darwin a seu filho. No entanto, aquele garoto irresponsável está em toda parte. Charles Darwin é tão famoso que não conseguimos distinguir a evolução dele mesmo.
Equacionar a evolução com Charles Darwin, cujo bicentenário do nascimento aconteceu neste mês, é ignorar 150 anos de descobertas, incluindo a maior parte do que os cientistas entendem sobe a evolução. Por exemplo: os padrões de hereditariedade de Gregor Mendel, a descoberta do DNA, a biologia do desenvolvimento, os estudos que documentam a evolução na natureza, o papel da evolução na medicina e nas doenças.
Ao falar em "darwinismo", perpetua-se a impressão de que a evolução envolve um homem, um livro, uma "teoria". O mestre budista Lin Chi dizia: "Se encontrares Buda na estrada, mata-o". A questão é que converter um mestre em fetiche sagrado significa passar ao largo da essência de seus ensinamentos. Matemos Darwin, então.
Que todas as formas de vida são relacionadas a partir de seus ancestrais comuns e que as populações mudam de forma com o passar do tempo são os traços largos e as pinceladas mais finas da evolução. A ideia não era exatamente nova. Fazendeiros e criadores criavam continuamente novas variedades de plantas e animais, selecionando aqueles que sobreviveriam para reprodução, e, assim, dando a Charles Darwin uma ideia pronta. A única coisa nova que ele percebeu foi que a seleção deve funcionar também na natureza.
Em 1859, as evidências encontradas por Darwin viraram o livro "Sobre a Origem das Espécies por Meio da Seleção Natural, ou A Preservação das Raças Favorecidas na Luta pela Vida".
A ciência era primitiva nos tempos de Darwin, que já era adulto quando cientistas começaram a discutir se germes causam doenças e se os médicos deveriam higienizar seus instrumentos.
Darwin não criou um sistema de crenças. Teve uma ideia, não uma ideologia. A ideia gerou uma disciplina, e não discípulos. Quase tudo o que entendemos sobre a evolução veio após Darwin, e não dele. Darwin não sabia nada sobre hereditariedade e genética, ambas cruciais para a evolução. A evolução nem sequer foi ideia dele.
Seu avô, Erasmus Darwin, acreditava que a vida evoluiu a partir de um único ancestral. "Devemos conjecturar que um único e mesmo tipo de filamento vivo é a causa de toda a vida orgânica?", escreveu em 1794. Ele só não pôde entender como.
Charles Darwin buscou o como. Pensando sobre a criação seletiva feita por fazendeiros, analisando a mortalidade de sementes e animais silvestres, ele aventou a hipótese de que as condições naturais atuam como filtro, que determina quais indivíduos sobrevivem para gerar outros como eles. Chamou o filtro de "seleção natural". O que disse sobre a evolução basicamente começa e termina ali. Foi um passo minúsculo para além do conhecimento comum. No entanto, porque apreendeu -corretamente- um mecanismo da diversificação da vida, seu insight foi poderoso.
O monge austríaco Gregor Mendel descobriu que, nas ervilhas, a herança de traços individuais segue determinados padrões. Seus superiores queimaram seus papéis postumamente, em 1884. Foi apenas quando a redescoberta "genética" de Mendel se uniu à seleção natural de Darwin nos anos 1920 que a ciência deu um passo gigantesco na compreensão da mecânica evolutiva.
O intelecto, a humildade e a presciência de Darwin nos surpreendem mais ainda à medida que os cientistas vão esclarecendo até que ponto ele acertou. Mas é apenas quando reconhecemos plenamente o século e meio subsequente de conhecimentos acrescentados desde então que podemos apreciar realmente tanto a genialidade de Darwin quanto o fato de que a evolução é a força motriz da vida, com ou sem Darwin.


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