São Paulo, segunda-feira, 24 de novembro de 2008

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INTELIGÊNCIA

Em Cuba, tempo para refletir

ROGER COHEN

Havana, Cuba
Se existe um lugar do mundo intocado pela crise econômica global, esse lugar é a Cuba de Fidel Castro. Enquanto se aproxima o 50° aniversário da revolução que o levou ao poder, em 1° de janeiro de 1959, Fidel ainda preside sobre seu experimento socialista, que se deteriora sem alarde.
O estresse habita as sociedades internetizadas do capitalismo moderno. De Hong Kong a Houston, pouca coisa alivia a pressão de possuir sempre mais. Como não há muito o que possuir na minguante Cuba, essa angústia existencial específica não existe. Em seu lugar, paira no ar a depressão dos dias ociosos.
As paredes se desfazem na bela Havana. A tinta dos muros descasca. O Atlântico atira suas ondas sobre o Malecón, possivelmente o mais belo trecho urbano à beira-mar que existe no mundo, jogando erupções de espuma sobre o muro de granito. As pessoas olham para o longe. Seus salários mínimos compram muito pouco. Não existe incentivo para trabalhar mais. Enquanto a cidade desmorona aos poucos, a única commodity que ganha valor é a conversa.
General Motors, Citigroup, AIG e o falecido e lamentado Lehman Brothers —esses são nomes distantes em Cuba, onde a glória perdida de Detroit está exposta na forma de Pontiacs e Studebakers dos anos 1950, com suas formas superadas e extravagantes. Nos tempos em que o consumismo ainda não se intensificara, as coisas eram construídas para durar. Na ausência de automóveis novos, os cubanos criaram sua versão própria do museu do automóvel americano.
Eles também, a um custo grande para eles mesmos, proporcionaram ao mundo agitado um lugar de silêncio estranho no qual há tempo parar para refletir. Não existe poluição visual em Cuba. Sim, vêem-se inúmeras exortações à promoção da glória do socialismo pintadas sobre muros e anunciadas em outdoors, mas a paisagem livre de publicidade comercial é um descanso para o olhar. A vida sem marcas comerciais existe, sim, afinal. A rodovia nacional de oito pistas que atravessa a ilha começou a ser construída com assistência soviética e foi abandonada pela metade quando a União Soviética implodiu. Lá, passam três carros a cada dois minutos. Um grande vazio se estende a perder de vista. Essa ausência quase incompreensível é uma medida da falência de Cuba. A vida é dura para a maioria dos cubanos, bastante dura.
Ela também é menos que livre, e isso eu não posso aceitar.
Contudo, num momento em que o Ocidente, de uma maneira ou outra, avalia o custo enorme do excesso, eu me descobri sentindo mais tolerância para com o adoentado Fidel do que teria imaginado possível.
Sua persistência obstinada em promover uma idéia ultrapassada levou muitos cubanos a deixar seu país e empurrou muitos mais à miséria. A economia cubana não faz sentido. Mas a obsessão de Fidel também instilou na população formas de orgulho, civilidade, altruísmo, educação e humor que estão entremeadas ao tecido puído da vida cubana e constituem sua estranha capacidade de resistência.
Eu me solidarizo com todo cubano que anseia por escapar desta bela ilha. Mas agradeço a Cuba por me dar a possibilidade de pressionar o botão de pausa. Todos nós precisamos disso de tempos em tempos. O choque de ser sugado para dentro da semivida congelada de Havana se compara apenas ao choque de emergir dela, de volta ao Starbucks, às canções natalinas (já!), aos 500 e-mails que me aguardam, ao sobe-e-desce do índice Dow Jones e aos empregos em processo de desaparecimento.
O perigo desse ataque globalizado a nossos sentidos, dessa demanda insaciável voltada contra nosso próprio ser, é o da desumanização. À medida que a farra movida pelo crédito vai se desfazendo, as pessoas estão consumindo menos e refletindo mais.
Nestes tempos de questionamentos, Cuba não nos oferece respostas. Mas ela é provocante. O reverso da humanidade assombrada dentro de sua falência material é a desumanidade do excesso material. O consumismo tem seu contraponto na ilha de Fidel

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