São Paulo, segunda-feira, 24 de novembro de 2008

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França vê cultura em sua culinária

Por ELAINE SCIOLINO

PARIS — Meia dúzia de chefs e especialistas gastronômicos comeram e beberam por três horas recentemente, num debate de estratégias para ajudar a França a desempenhar uma tarefa nada fácil. O grupo informal, a Missão Francesa do Legado e das Culturas Alimentares, espera persuadir a ONU a declarar a gastronomia francesa um patrimônio mundial.
Quando os figos assados, as ameixas secas maceradas ao vinho e o sorvete de Earl Grey chegaram no salão de jantar de Guy Savoy, chef condecorado com três estrelas Michelin, os presentes estavam mergulhados numa discussão sobre a magia da culinária de seu país. “Ela é tudo!”, disse Savoy. “A França é o único país do mundo com tanta diversidade.” Ele já compilou uma lista das iguarias regionais que acha que devem ser salvas, como a linguiça “andouille” de Vire, o alho defumado de Arleux e o doce mentolado de Cambrai, conhecido como “bêtise”.
Enquanto isso, o maior historiador gastronômico da França e presidente do grupo, Jean-Robert Pitte, saboreava o arroz-doce com baunilha taitiana e mergulhava em clima de saudosismo. “É baunilha!”, disse ele. “É a vovó! É Gauguin!”
Eles não falam abertamente sobre seus inimigos: aclamados chefs estrangeiros que desafiam a preeminência da culinária francesa, ou as redes de fast-food que infiltraram a França.
Mas, com a economia em problemas e a comida francesa sendo desvalorizada, essa iniciativa é um esforço para capitalizar em cima de algo que há anos é motivo de orgulho nacional.
A Unesco (Organização da ONU para a cultura) mantém há anos uma lista de sítios considerados patrimônio mundial, desde Machu Picchu até a Grande Muralha da China. Em 2003, a agência adotou a Convenção para a Salvaguarda do Patrimônio Cultural Impalpável, que reconhece manifestações culturais como a atividade dos contadores de histórias do Quirguistão e dos cuidadores de rebanhos de bois na Costa Rica.
Vizinhos europeus da França estão, de certo modo, concorrendo com a proposta francesa. Em junho, a Espanha reativou uma iniciativa para conseguir o reconhecimento da saudável dieta mediterrânea, baseada no consumo de azeite de oliva, peixes, grãos, frutas, nozes e verduras; Itália, Grécia e Marrocos se uniram à proposta.
Na Itália, a organização de agricultores Coldiretti chegou a argumentar que o patrimônio gastronômico italiano é superior ao da França, já que a União Européia reconhece 166 especialidades gastronômicas italianas, mas apenas 156 francesas.
A França apresentará uma proposta formal em 2009, mas é possível que a Unesco a rejeite. Chérif Khaznadar, presidente do grupo de países da Unesco que assinaram a convenção cultural, mostrou-se pouco receptivo à idéia. “Não existe categoria gastronômica na Unesco”, disse.
A idéia foi ridicularizada até mesmo na França. François Simon, sarcástico crítico gastronômico do “Le Figaro”, escreveu que, se a França conseguir o status da Unesco, “abrir a porta de um restaurante, fazer um suflê crescer, descascar uma ostra vão tornar-se parte de uma atividade cultural, assim como cochilar durante uma ópera, bocejar no teatro ou cansar-se ao ler ‘Ulisses’, de James Joyce”.

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