São Paulo, segunda-feira, 29 de agosto de 2011

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ARTE & ESTILO

Definindo a dádiva misteriosa do carisma

Um poder quase tangível que não pode ser ensinado

ZACHARY WOOLFE
ENSAIO

Maria Callas retornou ao Metropolitan Opera em 19 de março de 1965, após uma ausência de sete anos. Foi uma das noites mais aguardadas na história do Met.
No dia seguinte, Harold Schonberg escreveu no "New York Times" que a primeira entrada de Callas provocou uma onda de aplausos que durou minutos. No final, ela foi chamada ao palco 16 vezes para receber mais aplausos.
Os críticos dão a isso o nome de carisma. Em resenhas recentes no NYT, aludi ao "carismático barítono russo Dmitri Hvorostovsky", à "carismática Hélène Grimaud" e ao "tranquilamente carismático cantor e compositor folk Sam Amidon". Escrevendo sobre um concerto beneficente para o Japão, mencionei "uma variedade brilhante de vocalistas carismáticas".
Mas o que é carisma?
Os artistas carismáticos são aqueles de quem você simplesmente não consegue desviar o olhar. O carisma deles é quase uma presença física, uma faísca que acende mesmo o trecho de música mais modesto.
Vivenciar uma performance carismática é sentir-se enaltecido, ao mesmo tempo aturdido e focado, eletrizado e ampliado. É render-se a algo elementar e natural, sentir-se feliz, mas também insatisfeito.
O carisma é exigente. Callas fazia um uso avassalador de seu corpo no palco.
É um dom sobre o qual se sabe pouco e que não pode ser ensinado. O jovem tenor Vittorio Grigolo ainda se acostuma ao palco, mas seu carisma é inconfundível.
Hoje temos uma cultura em que a habilidade técnica dos artistas é mais impressionante que nunca. Mas carisma não é virtuosismo. Christian Tetzlaff é um violinista tecnicamente impecável, mas não é carismático. Joshua Bell, menos inovador mas igualmente virtuosístico, é carismático.
Nosso reconhecimento do carisma é marcado por uma unanimidade especial. Escrevendo em abril, no NYT, sobre um recital em que participou o contratenor David Daniels, mencionei que "seu carisma e tonalidade suavemente aveludada não constituíam surpresa". Em agosto, Anthony Tommasini escreveu no NYT, que David Daniels canta "com o virtuosismo e o carisma esperados".
No outono passado a soprano Marina Poplavskaya fez os papéis principais em duas produções novas de Verdi no Met. A voz dela é mais interessante que bela, e sua respiração é péssima. Mas Poplavskaya possui carisma.
Em "Don Carlo", quando Elisabetta descobre que sua dama de companhia a traiu, ela exige de volta um pequeno crucifixo. Poplavskaya estendeu a mão para pegar o objeto, e sua presença fez o momento avassalador.
O carisma funciona com mais força no nível visual; é revelador o ditado "você não consegue desviar o olhar dela". Gravações em áudio podem ser modificadas para criar ilusão de comando. O filme nunca mente.
Para os gregos antigos, o carisma era uma dádiva. Caris, cujo nome significava beleza e bondade, era dama de companhia de Afrodite, a deusa do amor.
Na teologia cristã, as dádivas de Deus são "carismata".
Para alguns, o carisma já teria perdido poder. O carisma é algo dado, deixamos subentendido; logo, passemos ao que interessa.
Vamos supor que o carisma seja o que interessa de fato _não tanto um meio para chegar a um fim, mas o próprio fim. Aquilo que vemos como sendo o "conteúdo" das artes _as anotações, a trama_ não passaria na realidade da estrutura que possibilita o que é crucial: a ária ou sonata é a plataforma que permite vivenciar o carisma.
Se o carisma fosse reconhecido como a experiência principal de uma performance, essa experiência assumiria um aspecto ritualístico. A arte não apelaria tanto para nossa inteligência ou gosto, mas, mais que isso, a instintos cuja existência mal reconhecemos.
O carisma combina com uma cultura em que o conhecimento da técnica artística declinou, mas segue a procura por novos públicos. Mesmo que você saiba pouco sobre os aspectos técnicos da música, quando assiste o pianista Evgeny Kissin, você é envolvido pela presença dele.
A questão é se as pessoas querem ser envolvidas. O carisma pode ser assustador. Se o que desejamos de uma performance é apenas ser tranquilizados e reconfortados, o carisma pode provocar nosso repúdio.
Recentemente ouvi a soprano Aprile Millo cantar uma ária com intensidade ardente, em um CD. Mais tarde, mandei um e-mail a ela, perguntando o que é carisma.
"Hemingway nos deu uma pista reveladora", ela respondeu. "Em sua obsessão com as touradas espanholas, ele falou da luxúria da multidão e de seu desejo de sentir algo especial, uma autenticidade, mesmo em um ambiente tão brutal. Ele menciona o silêncio da multidão quando os toureiros entram em cena. As pessoas sentem a diferença entre os toureadores que o faziam pela fama, pelo dinheiro, e os que eram movidos pelo espírito antigo: a nobreza, a bravura, o coração, o 'duende'. Acredito que o mesmo acontece no teatro. O público consegue identificar o artista que traz uma mensagem autêntica, que tem uma conexão com a verdade."


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