São Paulo, domingo, 03 de novembro de 2002

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OMBUDSMAN

Razão e emoção

BERNARDO AJZENBERG

Durante o governo Fernando Henrique Cardoso, em especial no segundo mandato, a Folha foi por vezes impiedosa.
Na economia, destacou-se por enfatizar notícias negativas -o que lhe valeu por parte de muita gente a pecha de pessimista, enquanto outros a consideravam apenas realista.
Sucederam-se no noticiário casos polêmicos, espinhosos para o governo: compra de votos pela reeleição, suspeitas de irregularidades nas privatizações, Dossiê Caribe, Caso EJ, entre outros.
Nada mais natural, agora, que esse posicionamento cético e distanciado -derivado de seu projeto editorial- se explicite diante do novo governo.
Daí a oportunidade do editorial "Mais democracia", publicado na capa de segunda-feira, que terminava assim:
"Ao saudar a legitimidade do presidente Lula, a Folha se compromete a manter sua linha editorial de independência e crítica, na convicção de que o melhor serviço que um jornal presta ao país é iluminar, questionar e discutir a atuação de seus governantes".
Pode ter soado antipático por sair no "day after" da vitória do PT. Porém, ante o clima de festa e euforia que tomou conta de grande parte das ruas e da imprensa -no primeiro caso, genuíno, esperado e compreensível, no segundo, nem tanto-, trata-se de uma postura legítima, transparente, saudável.
O quadro ao lado mostra, apenas para dar um exemplo, como os jornais editaram nas capas de quarta-feira o encontro entre FHC e Lula. Além de não ter dado ao histórico evento um título laudatório ou emocional, a Folha foi o único jornal cuja foto não tinha como centro os políticos; o abraço entre eles dividia espaço com a mesa presidencial simbolicamente vazia.
Mais uma vez, pode parecer birra do jornal. Penso, no entanto, que se trata de uma abordagem "fria", para um leitor que busca análise e informação e que deve ter outros fóruns mais apropriados para festejar ou lamentar o resultado eleitoral.

Desafio
Chega, porém, de elogios; o ombudsman não é pago para isso. As dificuldades, para a Folha, já começaram, e seu maior desafio é justamente aplicar aquela linha, definida no editorial, de forma criteriosa, equilibrada, com qualidade.
Para isso, caberia mergulhar profundamente na análise política e sociológica dos resultados das eleições estaduais e nacional -o que se fez até agora de modo superficial ou só quantitativo.
Promover em suas páginas o debate sobre os diferentes projetos e planos apresentados -algo que se esboçou, creio, no caso do Fome Zero.
"Descobrir" e revelar aos leitores personagens que começam a ocupar a cena política, nomes até há pouco ignorados, como Palocci, Gushiken, Dulci, Graziano e outros que virão. Até agora, seus perfis apresentados ao longo da semana pelo jornal foram minguados, esqueléticos.
Na situação que se abre, o noticiário deveria obrigar-se a sondar continuamente, com entrevistas ou pesquisas, a receptividade de diferentes setores -empresários, trabalhadores, servidores, sem-terra, mercado financeiro- aos passos do governo.

Simbologia
Ao contrário do que se fez nos primeiros dias da semana, quando foram subestimados elementos típicos de discursos ou de atitudes de Lula, uma dedicação específica caberia aos aspectos simbólicos próprios desse personagem, sua trajetória, estilo, as particularidades na relação com seu partido e adversários.
Fazer tudo isso -e obviamente transmiti-lo ao leitor- requer da Folha um reajustamento no olhar, uma reeducação, a busca de novas fontes de notícia, um esforço concreto no sentido de se reaparelhar tecnicamente.
Tudo isso, não custa enfatizar, sem se deixar levar pela emoção, por ímpetos adesistas ou oposicionistas -próprios de militantes e de partidos, não de uma imprensa verdadeiramente livre.



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Bernardo Ajzenberg é o ombudsman da Folha. O ombudsman tem mandato de um ano, renovável por mais dois. Ele não pode ser demitido durante o exercício do cargo e tem estabilidade por seis meses após o exercício da função. Suas atribuições são criticar o jornal sob a perspectiva do leitor -recebendo e verificando as reclamações que ele encaminha à Redação- e comentar, aos domingos, o noticiário dos meios de comunicação.
Cartas: al. Barão de Limeira 425, 8º andar, São Paulo, SP CEP 01202-900, a/c Bernardo Ajzenberg/ombudsman, ou pelo fax (011) 224-3895.
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