São Paulo, domingo, 05 de setembro de 2004

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OMBUDSMAN

Ainda o povo de rua

MARCELO BERABA

Escrevi , na coluna de domingo passado, a propósito da cobertura que a Folha fez dos assassinatos no centro de São Paulo, que o jornal não soubera aproveitar o momento para abrir e aprofundar a discussão sobre a população que vive nas ruas.
São mais de 10 mil pessoas sem perspectivas de vida. Nem todos são mendigos. Muitos trabalham recolhendo papel e latas. É um problema seriíssimo, como ficou demonstrado na seqüência de chacinas iniciadas dia 19. Na quinta-feira passada, mais uma pessoa foi assassinada, e agora já são sete mortes.
O jornal começou mal a sua cobertura. Mas, com o correr dos dias, passou a acompanhar bem as investigações policiais e acabou revelando, em reportagens esparsas, um pouco da vida dessas pessoas abandonadas. Foi bem ao manifestar sua opinião e exigir providências por meio de três editoriais. E teve momentos de brilho com as charges do Angeli, do Glauco e do Jean, publicadas no caderno Opinião (página A2).

Fórum de debates
Falhou, no entanto, ao não abrir espaço para o debate. Jornais informam, prestam serviços e são, por tradição, fóruns de discussão e de confronto de idéias e políticas. Nem sempre fazem bem. Às vezes, deixam os assuntos fugirem, às vezes, os tratam sem aprofundamento.
Não é um problema só da Folha. Acho improvável que algum leitor tenha conseguido consolidar uma opinião sobre assuntos polêmicos, como o sistema de cotas nas universidades, por exemplo, ou os riscos dos transgênicos, lendo apenas os jornais.
É um desafio abrir espaço para os novos assuntos, fugir das discussões ralas, conseguir contribuir de fato para o entendimento dos problema e para a busca de soluções. Mas esse é um papel que cabe aos jornais mais do que a qualquer outro meio noticioso.
No caso da Folha, estranhei seu posicionamento desde o início. O jornal, que não costuma perder os grandes temas, ignorou completamente o drama dos moradores de rua. A seção "Tendências/Debates", espaço privilegiado para a discussão, não havia publicado, 15 dias depois das tragédias, um só artigo.
Aos sábados, a seção tem um formato diferente. Propõe uma pergunta, que deve ser respondida com um "não" e com um "sim". No sábado, 28, quando o assunto ainda estava quente e poderia ter inspirado uma boa pergunta a ser respondida por especialistas, o jornal preferiu um tema relativo à Olimpíada, que terminava: "Os esportes de alto rendimento são sobrevalorizados no Brasil?". Ontem, optou por discutir o projeto das Parcerias Público-Privadas.
Para não dizer que inexistiu discussão, na sexta-feira, duas semanas depois da primeira chacina, o caderno Cotidiano publicou um resumo das principais propostas dos candidatos à Prefeitura de São Paulo e brevíssimos comentários de especialistas. Nada mais.

Incômodo
Em relação à ausência de artigos, ouvi o jornalista Fábio Chiossi, da Coordenação de Artigos e Eventos: "Não acho que o assunto seja o mais adequado para a pergunta de sábado, que prevê uma resposta com sim e outra com não. Concordo que o assunto deveria figurar em "Tendências/Debates" em dias normais, e estou tentando abrir um espaço para publicar artigos a respeito. Além disso, convidamos o padre Júlio Lancellotti (da Pastoral do Povo da Rua da Arquidiocese de São Paulo) para participar de um debate sobre violência na cidade".
Chego à conclusão que o assunto é mais incômodo do que eu imaginava, e não tem o glamour das grandes polêmicas. É mais fácil discutir os distantes problemas nacionais ou as loucuras do terrorismo internacional.
O baixo número de mensagens dos leitores ao longo da semana que passou (15 cartas até sexta) revela, de uma certa forma, que o assunto não atrai tanto. Talvez seja difícil encará-lo.
Mas ele está aí, querendo ou não, e ainda sem solução. Estamos às vésperas de uma eleição para o cargo Executivo que tem como responsabilidade cuidar da cidade e de sua gente. Não há como fugir do problema.


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Marcelo Beraba é o ombudsman da Folha desde 5 de abril de 2004. O ombudsman tem mandato de um ano, renovável por mais dois. Não pode ser demitido durante o exercício da função e tem estabilidade por seis meses após deixá-la. Suas atribuições são criticar o jornal sob a perspectiva dos leitores, recebendo e verificando suas reclamações, e comentar, aos domingos, o noticiário dos meios de comunicação.
Cartas: al. Barão de Limeira 425, 8º andar, São Paulo, SP CEP 01202-900, a/c Marcelo Beraba/ombudsman, ou pelo fax (011) 224-3895.
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