São Paulo, domingo, 24 de outubro de 2004

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OMBUDSMAN

O novo caso Herzog

MARCELO BERABA

Nunca vi nada parecido com o que aconteceu ao longo desta semana na imprensa depois que o "Correio Braziliense" divulgou, no domingo, três fotos de um homem nu que identificou como sendo o jornalista Vladimir Herzog. As fotos teriam sido feitas no cárcere do DOI-Codi de São Paulo, em 1975, pouco antes de Herzog ser assassinado por pertencer ao Partido Comunista Brasileiro.
A revelação do "Correio" provocou uma crise, que ainda pode ter desdobramentos, entre o governo petista e o Exército; deu dimensão nacional ao movimento que exige a abertura dos arquivos da repressão; e deixou os jornais brasileiros desatinados em relação à identidade do homem nu que aparece nas fotos.
A certeza do domingo, de que o retratado era Herzog, foi sendo substituída, ao longo da semana, por questionamentos que culminaram, quinta, com a informação de que se tratava de um padre canadense, igualmente perseguido pelo regime militar.
Quem é o homem sentado, cabisbaixo e humilhado, que ocupou as páginas de quase todos os jornais ao longo da semana?
A Folha estava segura, na sexta, depois de ter acesso ao arquivo "à disposição do presidente", de que se trata do padre canadense. O "Correio" mantinha a certeza, com base em identificação feita e confirmada pela viúva de Herzog, Clarice, e de um laudo pericial, de que pelo menos uma das fotos é de Herzog. "O Globo" e o "Estado" não pareciam tão seguros e preferiram manter as duas possibilidades, sem assumi-las.
Independentemente da identidade da foto, a imprensa brasileira cometeu vários deslizes ao longo da semana, e é deles que pretendo tratar. A própria desorientação, evidente nas edições de sexta-feira, é conseqüência de alguns erros.

A apuração
O primeiro problema está na apuração da reportagem do "Correio Braziliense". O jornal tinha submetido as fotos a alguns antigos companheiros de Herzog, mas nenhum deles foi concludente. E dificilmente o seriam, dada a qualidade das fotos e o tempo corrido, 29 anos.
O jornal decidiu publicar a reportagem "Herzog, humilhação antes do assassinato" depois que teve uma das fotos reconhecidas pela viúva do jornalista, Clarice. Ela recebeu as três cópias de baixa qualidade por e-mail. Na manhã de sábado, reconheceu uma delas, não as três.
As dúvidas que surgiram, e permanecem, indicam que o mais prudente teria sido o encaminhamento das fotos para outros testes de identificação e para uma perícia que as comparasse com outras fotos e que levasse em conta várias ponderações que estavam sendo feitas quanto às características do corpo e ao ambiente. Como só o "Correio" tinha as fotos, dispunha de tempo para tentar obter mais informações nos bastidores do governo e nas áreas militar e de inteligência.
Estes procedimentos teriam evitado a discussão pública que certamente constrange a família e amigos de Herzog e, agora, um padre e uma religiosa que não tinham nada a ver com a história.

A humilhação
Um segundo problema, surgido antes mesmo das dúvidas quanto à identificação das fotos, foi levantado por vários leitores: os jornais tinham o direito de publicar as fotos de um homem, qualquer que seja, nu e desamparado? Vários leitores consideram "falta de respeito" e de ética.
Em entrevista publicada pelo "Correio", Clarice Herzog declarou que se sentia incomodada e desconfortável com o ressurgimento do caso. Escrevi para ela perguntando se considerava que os jornais não deveriam ter publicado as fotos.
Sua resposta: "Acho que os jornais fizeram bem de ter publicado as fotos. A notícia tem que ser dada, por mais doída que seja. A questão é encontrar o tom certo. O que me agrediu, além das fotos em si, foi a forma como foram publicadas. Alguns jornais, não preciso citar nomes, deram um caráter sensacionalista ao assunto, expondo duplamente o Vlado com fotos imensas, na primeira página, com o intuito de realmente chocar o leitor, como se as fotos por si mesmas não fossem suficientemente terríveis".
Segundo o diretor de Redação do "Correio", Josemar Gimenez, Clarice pediu a vários amigos comuns que o jornal evitasse publicar fotos que mostrassem Herzog sendo torturado. Havia a informação de que o "Correio" tinha mais fotos além das que publicou. "Disse que não tínhamos mais fotos e, se tivéssemos, não publicaríamos. Não daria fotos muito chocantes, mas mostrar a foto do Herzog preso e humilhado nos porões da ditadura, reconhecido pela Clarice, é importante e inédito, o que dá a grandeza da informação. E acho muito importante poder contar a história política do país".
Para Suzana Singer, secretária de Redação da Folha, "são fotos de valor histórico, sem nenhuma conotação sexual. Esconder parte da foto ou colocar tarja seria praticar a antinotícia".
Estou de acordo com a avaliação dos três. Comprovado que as fotos são de Vladimir Herzog e que foram tiradas pouco tempo antes de ser morto, elas têm um valor histórico e documental que justifica sua publicação.

As chantagens
É diferente, na minha opinião, da forma como o padre canadense foi tratado por vários jornais na sexta-feira. Por considerar que as fotografias tinham sido obtidas de forma ilegal pelo SNI (antigo Serviço Nacional de Informações), a nota do governo que informou que as fotos não eram de Herzog não revelou o nome do novo personagem: "Por violar a vida privada dos fotografados, estou impedido moral e legalmente de revelar os nomes das pessoas na fotografia", assinou o ministro Nilmário Miranda (Direitos Humanos).
O ministro estava certo. O padre havia sido vítima de investigações ilegais, de armações e de chantagens para desmoralizá-lo por ser da ala progressista da igreja. Bastava os jornais informarem que ele tinha sido alvo de espionagem do SNI.
Nada legitima o relato minucioso -sem interesse político ou histórico- das difamações contra o padre e uma religiosa, feito pela Folha na sexta-feira com base nas fichas pessoais dos dois, montadas para chantegeá-los. Ao fazê-lo, a Folha os expôs a novos constrangimentos.
O caso todo, como vimos, é complicado. Estamos tratando, ao mesmo tempo, com questões de Estado e com a vida e a morte de pessoas que foram ultrajadas. A cobertura exige dos jornais prudência, sensibilidade e rigor jornalístico.


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