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José Vicente

TENDÊNCIAS/DEBATES

Devem ser criadas cotas para negros também no serviço público?

sim

A exclusão do negro e a negação das raças

O regime escravocrata criou um sistema para se justificar que era político, psicológico e simbólico. Ele naturalizava a desumanização e a demonização do negro.

A finalidade era garantir a segurança do regime, os lucros da acumulação, o usufruto dos privilégios e as vantagens sociais para os membros do "establishment", ou seja, o senhor branco e sua parentela.

A república instalada um ano depois da abolição não arrefeceu e não modificou, como não podia fazer, a mentalidade e a prática escravagista do senhor e do escravo.

Pelo contrário, ela reproduziu a presença do senhor branco como superior e depositário natural dos privilégios dos cargos e empregos públicos. Ela excluiu o negro, ex-escravo e inferior, da legitimidade e da possibilidade de participação na gestão e no acesso à burocracia estatal, apesar de politicamente serem os cidadãos iguais em direitos.

Enquanto o Estado se recolheu na ambiguidade da neutralidade, a elite republicana preferiu o silêncio perante o Apartheid social.

Quando não pôde calar, como na substituição da mão de obra negra pelo imigrante, tentou negar que o racismo e a discriminação contra os negros constituíam um projeto de poder e manutenção de privilégios, justamente porque éramos uma democracia racial forjada na mistura tripartida e generosa de raças.

Diante dos incontroversos indicadores sociais, negando a existência das raças, essa elite esgrimiu as desigualdades raciais como fato socioeconômico, subordinando a sua resolução exclusivamente às políticas universalistas. O acesso às oportunidades e a distribuição de vantagens deveriam ser igualizadas somente pelo mérito puro, fossem as pessoas em questão iguais ou desiguais.

Os concursos públicos envolvem testes de conhecimento linear adquirido através de preparação intensiva, à custa de pesados investimentos financeiros. As graves distorções e desigualdades sociais, econômicas, raciais e educacionais que atingem os mais pobres -70% são negros- tornam impossível uma disputa justa para o emprego público de prestígio e status relevantes.

Isso aprofunda a exclusão entre grupos e pereniza a presença dos negros no baixo escalão. O resultado é a concentração de renda em um só grupo, pervertendo os fundamentos de mobilidade e justiça social.

Justamente por isso, o emprego público relevante se tornou prisioneiro de grupos sociais fechados, tenha isso acontecido de maneira intencional ou involuntariamente.

Ele acabou dominado por um grupo com uma produção e reprodução de valores, trajetórias, históricos, estéticas e códigos de relacionamento totalmente apartados da miscigenação, sem representar os negros do país.

Acresça-se o fato de que o mérito do conhecimento e habilidade é só um lado da questão. Isso não explica o grande número de cargos comissionados sem provas ou títulos que, da mesma forma, não expressam nem contemplam nossa diversidade racial.

Por isso, são indispensáveis as cotas nos concursos públicos, principalmente naqueles de mais prestígio e remuneração, imprescindíveis para o desenvolvimento do Brasil.

Além de colocar o Estado intencionalmente ao lado dos mais desfavorecidos, elas permitirão introduzir um mecanismo de equilíbrio na distribuição das oportunidades e na expansão dos talentos individuais.

Trata-se de um verdadeiro choque de gestão para combater decisiva e corajosamente as desigualdades raciais, igualizar na partida os desiguais e promover justiça, democracia, valorização e reconhecimento da contribuição dos negros na construção, enriquecimento e grandeza do nosso país.

JOSÉ VICENTE, 53, advogado e doutor em educação pela Universidade Metodista de Piracicaba, é reitor da Faculdade Zumbi dos Palmares

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