São Paulo, domingo, 01 de fevereiro de 2004

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REPÚBLICA RENTISTA

Ao fim do primeiro ano de mandato de Luiz Inácio Lula da Silva, o governo desembolsou R$ 145,2 bilhões para o pagamento dos juros da dívida pública, o que corresponde a 9,49% do PIB. O valor supera o empenhado em 2002, quando o montante dos juros atingiu R$ 114 bilhões -ou 8,47% do PIB. Para que se tenha uma idéia do que essas obrigações representam, dois meses de pagamento de juros correspondem ao dispêndio anual com o Sistema Único de Saúde. Dez dias seriam suficientes para cobrir os gastos anuais do Programa Bolsa-Família.
A despeito da relativa estagnação da economia, o setor público conseguiu ultrapassar no ano passado a meta de superávit primário acertada com o FMI, de 4,25% do PIB. O superávit primário é o resultado das receitas menos as despesas, excluídos os pagamentos de juros. União, Estados, municípios e estatais apresentaram um saldo de R$ 66,2 bilhões, o que representa 4,32% do PIB. Em 2002, o setor público havia realizado superávit primário de R$ 52,4 bilhões, equivalente a 3,89% do PIB.
A clássica fórmula de cortar despesas e elevar receitas comandou as ações governamentais. No caso do governo central, o aumento nominal de arrecadação foi de R$ 36 bilhões -11,2% a mais do que em 2002 e acima da inflação ao consumidor de 2003, de 9,3%. Já as despesas de custeio e capital da administração federal caíram R$ 3,7 bilhões. O superávit primário, no entanto, não foi suficiente para cobrir os juros, gerando um déficit nominal de 5,16% do PIB, que teve como conseqüência o aumento da dívida pública. Ela chegou a R$ 913 bilhões ao final do ano passado, representando 58,2% do PIB. Houve, no entanto, uma ligeira melhora em seu perfil, com alongamento dos prazos e aumento da participação de títulos pré-fixados.
Essa realidade evidencia que a economia brasileira é presa de uma armadilha que tem tolhido sua capacidade de investimento e crescimento. É como se o país estivesse se transformando numa espécie de "república de rentistas", com sua riqueza dirigida para fundos de investimento lastreados em títulos da dívida pública, de baixo risco e alto rendimento. De certa forma, os agentes econômicos, empresas, bancos, classes médias, tornaram-se sócios compulsórios de uma realidade na qual a produção, relegada ao segundo plano, deu lugar à ciranda financeira.
Vive-se um círculo vicioso, que exige ajuste fiscal permanente e cada vez maior para pagar os juros da dívida pública e absorver os impactos das flutuações cambiais. Em relação aos deveres do Estado, naquelas áreas em que sua atuação é imprescindível, o que se observa é uma crescente deterioração da capacidade de investimento e implementação de políticas. Os recursos necessários à educação, à saúde, ao saneamento, à segurança pública são contingenciados para a obtenção dos superávits.
Não se trata, obviamente, de defender políticas irresponsáveis e populistas de ampliação de gastos públicos, tampouco de clamar por medidas que coloquem em risco a credibilidade do país. É preciso, no entanto, que a sociedade e as autoridades econômicas se dêem conta do contra-senso que é o modelo econômico em vigor. Nada disso deixou de ser mencionado pelo candidato Luiz Inácio Lula da Silva quando se tratava de acenar com mudanças para vencer as eleições. Lamentavelmente, uma vez no poder, o presidente limita-se a afiançar uma política econômica que nada mais tem feito do que repetir -e até mesmo agravar- os erros e problemas que deveria corrigir.



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