São Paulo, domingo, 01 de fevereiro de 2004

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BBC x BLAIR

O tão esperado inquérito da Justiça britânica sobre o suicídio do cientista David Kelly é implacável: o premiê Tony Blair e o governo são isentados de praticamente todas as suspeitas de ter manipulado relatórios dos serviços secretos. Já a BBC, que divulgou reportagem acusando o governo dessa prática, foi severamente criticada. Os dois principais dirigentes da TV pública renunciaram a seus postos.
Sabe-se, hoje, que o Iraque não possuía armas de destruição em massa e que os relatórios de inteligência produzidos pelos serviços secretos britânico e norte-americano estavam errados. Parece paradoxal que a BBC sofra críticas por ter divulgado uma reportagem que se revela, no final das contas, se não exata, ao menos compatível com essa conclusão -ao mesmo tempo em que o governo, cujos temores se mostraram, afinal, equivocados, seja eximido de culpa.
O paradoxo é mesmo aparente. Pelo menos em teoria, é possível que a reportagem não tivesse nenhuma base técnica e que o governo tenha agido com total boa-fé. É mais ou menos isso o que diz o relatório do juiz da Suprema Corte lorde Hutton, que investigou durante meses o suicídio de Kelly depois que o cientista e assessor do Ministério da Defesa teve revelado seu nome como principal fonte da reportagem da BBC.
A imprensa britânica, de um modo geral, fez severas críticas ao relatório Hutton. Em que pese uma reação talvez corporativa, as queixas não deixam de ser justificáveis. As conclusões do juiz são excessivamente rígidas e parciais. Como observou Yavuz Baydar, presidente da ONO, organização que congrega ombudsmans de veículos de comunicação de 15 países, o risco do parecer de Hutton é ser lido como uma recomendação para que o jornalismo não procure ir além do declarado -num mundo onde governos e autoridades mentem com freqüência.
A BBC admitiu que cometeu falhas técnicas na reportagem em questão. Mesmo que se aceite que o premiê Tony Blair estava convencido da acuidade dos relatórios de seu serviço secreto, como parece razoável, as informações estavam tão erradas que se torna inverossímil imaginar que todos no governo e nos serviços secretos tenham agido sem dolo.
Faltou ao relatório Hutton o equilíbrio entre a necessária condenação de falhas de procedimento da mídia e o reconhecimento de que, ainda assim, não se devem desestimular os esforços de jornalistas de ir além das aparências na tarefa de informar e fiscalizar o poder.



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