São Paulo, terça-feira, 01 de março de 2005

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ROBERTO MANGABEIRA UNGER

Favas descontadas

Parece que não pode mudar. Parece que a única alternativa politicamente viável é a recondução ao poder dos mesmos que governavam o país antes, em nome do mesmo projeto dos que governam agora. Parece que o declarado contentamento da maioria dos eleitores com o presidente desmente a força do desejo mudancista. Parece que a possibilidade de mudar acabou quando a economia voltou a crescer. Parece que o continuísmo encontra reforço definitivo na ausência de agentes políticos, nacionalmente visíveis, que representem outro rumo com a moderação, o realismo e a competência que os cidadãos têm o direito de exigir.
Parece, mas não é: entre todos esses "pareces" e a realidade, há espaço para a vontade transformadora atuar.
Para começo de conversa, quando foi a última vez que os fatos aconteceram em nossa política de acordo com o roteiro anunciado nos jornais? É para jogar roteiros fora e para escrever outros que se faz política. A recente eleição na Câmara dos Deputados é pequeno exemplo: só não acontece o surpreendente quando o sentimento de sua impossibilidade inspira as omissões que acabam por tornar o surpreendente impossível.
Vencida essa preliminar, importa entender como o eleitor encarna eleição. Ele não precisa de crise econômica para repudiar um governo. A história da política moderna em qualquer país demonstra que opções eleitorais por mudanças de rumo ocorrem com mais freqüência em situações de desafogo econômico do que em momentos de descalabro econômico: o pânico desestimula reorientações decisivas. Mais perigoso para o poder numa democracia do que reveses na economia é a disposição popular de partir para novas tarefas e a convicção popular de que elas exigem novos executores.
O eleitor pode avaliar bem um governo e, contudo, despedi-lo, como aconteceu na última eleição paulistana. Voto não é distribuição de medalha em concurso de prêmios; é decisão a respeito do futuro. Há duas indagações em eleição: qual a tarefa da próxima etapa e quem, entre os concorrentes, pode melhor executá-la? Quem cumpriu bem uma missão na vida nacional raramente será o mais capaz de cumprir a missão seguinte. A obra de estabilização econômica está feita; ninguém que seja responsável quererá revertê-la. A obra seguinte é botar o país para trabalhar e para estudar.
É verdade que a bagunça partidária e os acertos entre o governo e os oligopólios de mídia dificultam o aparecimento de novas mensagens e novos mensageiros. Entretanto os brasileiros sabem defender-se: anulam essas dificuldades excepcionais com facilidades igualmente extraordinárias. Despidos de preconceitos em política e afeitos a opções eleitorais audaciosas, buscam saída sob qualquer rótulo e agente sob qualquer roupagem. Candidato presidencial desconhecido no Brasil se faz conhecido em um mês de campanha. Basta um mês para produzir reviravolta no quadro sucessório.
Resumo da história. É muito difícil desmontar a máquina que se apoderou do Brasil, feita de dinheiro que compra consciências, de temores que corroem esperanças e de dogmas que substituem pensamentos. Quem diz, porém, que a eleição presidencial de 2006 são favas contadas não entende de política. E não entende de Brasil.


Roberto Mangabeira Unger escreve às terças-feiras nesta coluna.
www.law.harvard.edu/unger


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