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O Supremo e a vida
JOSÉ CARLOS DIAS
A utilização, em outro ser, de células-tronco consideradas inviáveis é a forma mais digna de dar continuidade ao projeto vital do criador
PLEITEIA O procurador-geral da
República que o Supremo Tribunal Federal declare inconstitucional o artigo 5º da lei nº 105/
2005, que autoriza a pesquisa para
fins terapêuticos com células-tronco
embrionárias inviáveis para a reprodução, argumentando que a vida tem
como marco inicial a fecundação, devendo ser, a partir de então, protegida
de forma absoluta pela Constituição.
A questão posta, e que está sendo
objeto de discussão e julgamento pela
Suprema Corte, esbarra numa premissa da maior importância: se o embrião fertilizado "in vitro" vier a ser
considerado inviável à reprodução,
pode, ainda assim, ser equiparado à
condição de pessoa, sujeito de direitos fundamentais?
A resposta é negativa. E isso porque
nem sequer o feto é equiparado à pessoa pelo nosso ordenamento jurídico.
O Código Penal, que pune o aborto
como crime, apresenta duas hipóteses de licitude de tal conduta: quando
se faz necessária para salvar a vida da
mãe em trabalho de parto ou quando
objetiva proteger a dignidade da mulher, desobrigando-a de prosseguir na
gestação do produto de um estupro.
O embrião é considerado inviável
quando apresenta má-formação ou
assim se presume quando tenha permanecido por tempo superior a três
anos em congelamento de menos 175
graus Celsius. Qual é o seu destino? O
descarte, o congelamento por tempo
indefinido ou a pesquisa terapêutica
autorizada pelos genitores. Nunca se
ouviu contar de funeral de embrião
que, se considerado um ser humano,
seria acompanhado de cerimônia
religiosa.
No caso de dar um destino científico ao embrião inviável, o que se está
objetivando é a busca de salvação para criaturas portadoras de males gravíssimos que as impedem de viver ou,
pelo menos, de desfrutar uma vida em
melhores condições. Abre-se a ciência para a tentativa heróica de dar esperança para muitos seres impossibilitados até de esperar por milagres.
Se o ordenamento jurídico prevê a
exclusão do caráter criminoso do ato
de matar em algumas circunstâncias,
como em legítima defesa ou em estado de necessidade, por que se há de
considerar crime a utilização de células-tronco inviáveis para a vida para
que viabilizem vidas de seres fadados
ao sofrimento, a moléstias sem volta,
à morte?
Os que pretendem que seja crime a
utilização de células-tronco incapazes de se transformarem em gente
com fundamento em princípios religiosos, lembrem-se de que a vontade
de Deus haverá de ser cumprida dando-se às células-tronco incapazes de
prosseguir seu ciclo evolutivo normal
o poder de serem viáveis para a salvação de pessoas incapacitadas de desfrutar a graça de viver em condições
mais condizentes com sua dignidade.
Quando se pensa em tais seres padecentes de tanto sofrimento, há de
se pensar também naqueles que repartem com eles tamanha dor e que
vêem na pesquisa que o Ministério
Público e entidades religiosas pretendem proibir uma esperança final para
a salvação dos seus entes queridos.
Indago, pois, e o faço agora como
cristão: por que se posiciona a igreja
de forma tão intolerante, inadmitindo a tentativa de cura de muitas criaturas, optando por desprezar o uso de
tais células na luta por salvar vidas?
Qual a razão teológica, moral, ética
para impedir que a pesquisa contribua com a obra do criador?
Sem atrever-me a penetrar na seara
de tais temas, ouso lançar argumento
intuitivo que me parece dever ser refletido. A utilização, em outro ser, de
células-tronco consideradas inviáveis
é a forma mais digna de dar continuidade ao seu projeto vital.
O voto do ministro relator Carlos
Ayres Britto é histórico, profundo e
extremamente humano. A ministra
Ellen Gracie, antecipando-se com seu
voto, marcou também sua posição de
coragem. Aguarda-se o voto do ministro Carlos Alberto Direito, que pediu
vista. Se é verdade que se trata de um
respeitado jurista conhecido como
homem fiel aos mandamentos da
igreja, cresce a esperança de que se
apóie na virtude da caridade para o
fundamento moral de seu voto, já que
sobejam motivos de ordem jurídica.
E, de qualquer forma, qualquer que
seja a orientação de seu voto, espera-se que permita que seus pares se pronunciem o quanto antes, para que a
questão seja definida de uma vez por
todas.
Estamos nós, ansiosos, diante de
um momento grandioso da história
do Supremo Tribunal Federal, aguardando uma decisão sábia e urgente,
decisão que deverá vir calcada na justiça e na compaixão.
JOSÉ CARLOS DIAS, 68, é advogado criminalista. Foi presidente da Comissão de Justiça e Paz de São Paulo, secretário da Justiça do Estado de São Paulo (governo Montoro) e ministro da Justiça (governo FHC).
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