São Paulo, segunda-feira, 01 de julho de 2002

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CLAUDIA ANTUNES

A mão direita

Discípulo e ex-colaborador de Pierre Bourdieu, o sociólogo Loïc Wacquant costuma apontar a "mão de ferro" do Estado, que reprime e pune, como o complemento institucional cada vez mais necessário à "mão invisível" do mercado, que, livre de amarras, produziu nos últimos 20 anos a explosão do trabalho precário e do desemprego.
Professor da Universidade da Califórnia em Berkeley, autor de "Prisões da Miséria" (editora Jorge Zahar), Wacquant vê nos Estados Unidos a matriz da preponderância dessa "mão direita" do Estado, representada pela polícia e pelo sistema penitenciário. Lá, a população carcerária foi multiplicada por três nos anos 90, tornando-se a maior do mundo, com 2 milhões de prisioneiros.
Na Europa, onde a rede de proteção social foi enfraquecida, mas não pôde ser desmantelada, a "mão direita" não domina, mas avança, como atesta a influência do tema da segurança nas eleições na França e na Holanda. Se, nos Estados Unidos, os alvos preferidos da repressão são negros e latinos (presentes desproporcionalmente entre os presos), na Europa ela se volta contra os imigrantes.
No Brasil, vivemos, na virada dos anos 90, o paradoxo de aprovar uma Constituição que aumentava gastos sociais, criando um arremedo de Estado previdenciário, e, logo depois, embarcar tanto no modelo de liberalização econômico-financeira quanto na "cruzada contra as drogas" -um dos motivos, nos Estados Unidos, do crescimento do contingente de presidiários, a partir do endurecimento das penas para posse e tráfico.
O resultado é um círculo vicioso, no qual os pobres têm mais acesso a saúde, educação e aposentadoria, mas o país não cresce o suficiente para proporcionar-lhes também renda e trabalho. Sem ter como integrar-se pela ocupação à sociedade "legal", o excedente humano criado pelo modelo econômico inclina-se para a criminalidade.
A resposta é o aumento da repressão (as polícias do Rio e de São Paulo estão matando cada vez mais neste ano de eleições) e da população carcerária. Mas, com as restrições orçamentárias do Estado e a mediocridade do crescimento da economia, não há dinheiro suficiente para investir ao mesmo tempo no sistema penitenciário e em rubricas sociais obrigatórias. Sucedem-se as fugas, os escândalos de corrupção nos presídios, as exposições do inferno nos reformatórios para menores de idade. As prisões de segurança máxima, orgulho americano, aqui não passam de uma paródia.
Quando a campanha eleitoral põe a segurança em primeiro plano, e os noticiários da TV mal disfarçam a decepção por não verem as Forças Armadas na rua ou o estado de defesa decretado, como pediu o prefeito carioca Cesar Maia, volta-se a dizer que o crime domina onde não há a presença do Estado. Mas isso é apenas meia verdade. Há nove escolas municipais no complexo de favelas do Alemão, quartel-general do "mais procurado" traficante do Rio, Elias Maluco. Não existe é o que fazer para viver dignamente quando as aulas acabam.
Sem resolver essa questão de fundo, a chamada guerra contra as drogas se torna apenas mais um meio de controle dos deserdados. Um duplo controle, já que eles também têm sua vida regulada pelas armas do tráfico. Para que sobreviva a liberdade irrestrita das finanças que não têm lastro na realidade, é preciso que os sobreviventes se cerquem de muros, e que os excedentes humanos sejam enjaulados.


Claudia Antunes é coordenadora de Redação da Sucursal do Rio. Hoje, excepcionalmente, não é publicado o artigo de Boris Fausto, que escreve às segundas-feiras nesta coluna.

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