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São Paulo, terça-feira, 01 de julho de 2003

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ROBERTO MANGABEIRA UNGER

Tarifas como lições

A controvérsia sobre as tarifas telefônicas revela confusão perigosa não só no governo mas também no país. Raciocínio em três etapas mostra qual o caminho certo e por que ainda temos dificuldade em trilhá-lo.
O primeiro passo do raciocínio é constatar o que mandam as leis. As leis que governam os contratos de concessão entre o governo e as operadoras prevêem os termos de reajuste de tarifas. A agência reguladora cumpriu a lei ao aprovar os reajustes anunciados. Se a Anatel tivesse recusado o reajuste integral de acordo com os índices previstos, as operadoras poderiam ter exercido seu direito legal de aumentar o preço de certos serviços. O resultado geral ficaria na mesma. Não se cumprem leis apenas quando são sábias; cumprem-se até que se mudem por meios constitucionais. Em sua defesa constrangedora dos reajustes, disse o ministro da Fazenda que o Brasil precisa continuar a respeitar leis e contratos para demonstrar seriedade aos investidores estrangeiros. O governo brasileiro precisa respeitar leis e contratos para demonstrar seriedade aos cidadãos brasileiros. Agências reguladoras, no Brasil ou em qualquer democracia contemporânea, não se subordinam a ministros ou a presidentes nem atuam como correias de transmissão de decisões de governo.
O segundo momento do raciocínio é reconhecer que o regime regulador instituído na época das privatizações está viciado pela obsessão com os investidores estrangeiros e pelo esquecimento dos cidadãos brasileiros. Em sua concepção original, o regime das agências funcionou como funciona agora a proposta de autonomia para o Banco Central: para resguardar os investidores estrangeiros (que se queriam atrair para as privatizações) contra as iniciativas de futuros governos. Colocou-se em segundo plano o que deveria estar em primeiro: os interesses dos consumidores e do país. Isso explica, por exemplo, a insuficiência, em todos os setores privatizados, das exigências legais e contratuais de investimento. Precisamos redefinir, por lei, as tarefas dos reguladores e as responsabilidades das empresas. E encontrar no maior grau de concorrência que seja sustentável a longo prazo a melhor disciplina de tarifa.
Chega o raciocínio a seu terceiro e mais penoso desdobramento. Foi em vão todo esse agrado aos investidores estrangeiros. Novos não vêm, e a maioria dos que estão aqui, inclusive nos setores privatizados, iria embora amanhã se descobrisse como sair sem perder quase tudo. A razão é simples. O império da lei é indispensável para os cidadãos; não o é, apesar do que ensina o ideário dominante, para os investidores. Do contrário, não teriam elegido esse caos jurídico que é a China contemporânea como destino predileto do capital internacional de risco. Para os investidores o que conta é o que falta agora no Brasil: crescimento econômico e as oportunidades que ele propicia, mesmo em meio à insegurança jurídica. País governado por gente que troca a defesa da economia real pela busca da confiança financeira e depois tenta atenuar os efeitos dessa rendição empobrecedora com zoada popularesca acaba abandonado por todos. Não deu certo o hábito de fazer demagogia cara para estrangeiro (em tema como regime de agência reguladora ou autonomia de Banco Central) e demagogia barata para brasileiro (em matéria como discurso inconsequente contra aumento de tarifa). Semeou confusão e ruína.


Roberto Mangabeira Unger escreve às terças-feiras nesta coluna.

www.law.harvard.edu/unger


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