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São Paulo, terça-feira, 01 de julho de 2003

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TENDÊNCIAS/DEBATES

A primeira pedra

RUY ALTENFELDER

A recente e pesada crítica da ONU ao salário mínimo no Brasil, contida em documento de seu Comitê de Direitos Econômicos, Sociais e Culturais, e a observação de que persiste no país uma "extrema desigualdade social", bem como impunidade, não representam nenhuma novidade para os brasileiros. Surpreende, porém, o fato de as Nações Unidas, no mesmo documento, manifestarem preocupação com a "ampla e profunda discriminação em relação à população negra e indígena". Coincidência ou não, no final de maio a TVE, da Espanha, exibiu para o mundo um documentário sobre a questão da discriminação de cor e raça no Brasil.
As observações da ONU e da TV espanhola à questão da discriminação não procedem. Poucas são as nações em que, como no Brasil, convivem em harmonia, solidariedade e paz numerosas etnias, credos, imigrantes e seus descendentes. A tese da discriminação racial, que às vezes prevalece em certas correntes de pensamento do país, não resiste à análise da realidade. Assim, a sua exportação como modelo de interação de nossa sociedade apenas contribui para deturpar a imagem nacional no exterior. A sociedade brasileira é estratificada, sim, mas predominantemente em função da perversa concentração de renda, cuja correção ainda nos desafia.
Assim, pode-se concentrar a análise do documento da ONU na questão socioeconômica relativa às condições de vida de milhões de brasileiros, que vivem abaixo ou pouco acima da chamada linha da miséria. Culpa significativa por essa situação encontra-se, efetivamente, nos equívocos verificados no plano interno, em 503 anos de história oficial. Igualmente, não podemos nos omitir na autocrítica quanto aos problemas atuais e à incapacidade do Brasil de realizar as necessárias reformas constitucionais, de realizar uma política econômica mais equilibrada entre as metas de controle da inflação e crescimento e de ingressar no círculo virtuoso do desenvolvimento. A nação tem consciência de seus problemas.


Poucas são as nações em que, como no Brasil, convivem em harmonia, solidariedade e paz numerosas etnias


Por outro lado, o Brasil não é um planeta nem tampouco uma ilha. É um país inserido num contexto mundial. E, nesse universo, globalizado a partir dos anos 90, só têm aumentado a concentração regional das riquezas, a miséria do Terceiro Mundo e a pobreza dos países emergentes, como demonstra, aliás, relatório do próprio Banco Mundial. Assim, a lição de casa para a redução dos contrastes, da estratificação social indevidamente taxada como preconceito e para a melhoria das condições de vida e inclusão não está restrita ao mea culpa de cada país. Trata-se de uma questão também global.
As barreiras protecionistas -tarifárias e, é importante frisar, não -tarifárias-, os subsídios à produção industrial e agrícola e o dumping social disfarçado sob a indignidade de salários aviltantes, práticas ainda muito presentes nos países industrializados e em grande nações asiáticas, também estão diretamente ligados à pobreza e à exclusão nos emergentes e subdesenvolvidos. Da mesma forma, o desprezo de nações ricas por tratados como o Protocolo de Kyoto e compromissos como o da erradicação da miséria e preservação das florestas alinha-se dentre os obstáculos atuais ao desenvolvimento sustentado.
Aparentemente, todos os benefícios e a melhoria da qualidade de vida atrelados ao ideário da globalização e da sociedade pós-industrial transformam-se em privilégios regionais, e não em direitos universais.
Assustador é constatar a crescente impotência dos organismos internacionais, como a própria ONU e a OMC (Organização Mundial do Comércio), na mediação entre os povos, na busca da paz e na justiça do comércio exterior. Nós, Brasil, devemos, sim, solucionar nossos problemas internos e jamais poderemos nos omitir nesse compromisso com a nossa própria história. Porém, num mundo em que as Nações Unidas foram incapazes de impedir que a deposição de um ditador e todas as metas colaterais se cumprissem à custa do assassinato de crianças inocentes, ninguém está moralmente habilitado a atirar a primeira pedra!

Ruy Martins Altenfelder Silva, 64, advogado, é presidente do Instituto Roberto Simonsen. Foi secretário da Ciência, Tecnologia, Desenvolvimento Econômico e Turismo do Estado de São Paulo (governo Geraldo Alckmin).


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