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Águas turvas
Transposição do São Francisco começa sem garantia de sobrevida ao rio e de chegada da água a quem dela precisa
A CONTROVÉRSIA sobre a
transposição do rio São
Francisco começou a
ser enterrada há duas
semanas, em Cabrobó (PE), por
escavadeiras do Exército. As máquinas inauguravam a obra civil
orçada em R$ 3,3 bilhões.
Na esteira do trator empreiteiro do governo Lula, uma semana
depois manifestantes fechavam
parte da vala com pás e picaretas.
Levantaram alguma poeira. Perto dali, o Velho Chico seguia seu
curso, mais morto que vivo.
O maior manancial do Nordeste semi-árido sofre com desmatamento nas margens de tributários e cabeceiras, poluição por
efluentes domésticos e agroindustriais e assoreamento do leito. A dicotomia "revitalização"
contra "transposição" consagrou-se como divisor de águas da
polêmica. Motivou a greve de fome do bispo de Barra (BA), dom
Luiz Flávio Cappio, que em 2005
conteve por 11 dias a maré governamental pró-transposição.
O presidente da República, de
Brasília, resolveu a celeuma a seu
modo: agora chama "transposição" de "revitalização", como fez
terça-feira em discurso no Planalto, ao renovar o pacto "Um
Mundo para a Criança e o Adolescente do Semi-Árido Brasileiro", patrocinado pela Unicef.
Um dia antes, o jornal "Valor
Econômico" mostrara que a revitalização prometida ao bispo
não passa de ficção orçamentária. Programas com tal objetivo
foram contemplados com R$ 1,3
bilhão no Programa de Aceleração do Crescimento (PAC). Em
2007 seriam R$ 124 milhões,
mas só 1,57% (R$ 1,9 milhão) havia sido empenhado nos primeiros cinco meses do ano.
Não foi a primeira demonstração de que promessa e ação se
contradizem. No dia 10, reportagem desta Folha já tinha comprovado a disparidade de gastos
com transposição e revitalização. Na primeira rubrica, desde
2005, contavam-se R$ 443 milhões (antes mesmo de iniciar-se
a empreitada). Na segunda, menos da metade: R$ 200 milhões.
Mesmo que se suspenda o juízo sobre a obra, a segurança hídrica da população do semi-árido permanece incerta. Em dezembro, a Agência Nacional de
Águas (ANA) divulgou previsões
sombrias em seu "Atlas Nordeste": 41 milhões de pessoas, em
53% dos municípios do Nordeste, correm risco de ficar sem
água suficiente até 2025.
A condição para evitar tal desastre seria deslanchar 546
obras em reservatórios e adutoras, ao custo de R$ 3,6 bilhões.
Não deixa de ser sintomático
que o "Atlas" evite entrar no mérito da transposição. E a própria
similaridade de cifras sugere que
subsistem no governo visões
conflitantes: para alguns técnicos, mais fundamental que aumentar a disponibilidade de
água é capilarizar a distribuição.
Sendo o país como é (basta
atentar para os escândalos de
promiscuidade entre políticos e
empreiteiras), há razões líquidas
e certas para temer que a opção
pela transposição tenha mais a
ver com a predileção desmesurada do Estado por grandes obras
do que com a população pobre
nordestina que lhe serve de álibi.
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