São Paulo, domingo, 01 de julho de 2007

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Águas turvas

Transposição do São Francisco começa sem garantia de sobrevida ao rio e de chegada da água a quem dela precisa

A CONTROVÉRSIA sobre a transposição do rio São Francisco começou a ser enterrada há duas semanas, em Cabrobó (PE), por escavadeiras do Exército. As máquinas inauguravam a obra civil orçada em R$ 3,3 bilhões.
Na esteira do trator empreiteiro do governo Lula, uma semana depois manifestantes fechavam parte da vala com pás e picaretas. Levantaram alguma poeira. Perto dali, o Velho Chico seguia seu curso, mais morto que vivo.
O maior manancial do Nordeste semi-árido sofre com desmatamento nas margens de tributários e cabeceiras, poluição por efluentes domésticos e agroindustriais e assoreamento do leito. A dicotomia "revitalização" contra "transposição" consagrou-se como divisor de águas da polêmica. Motivou a greve de fome do bispo de Barra (BA), dom Luiz Flávio Cappio, que em 2005 conteve por 11 dias a maré governamental pró-transposição.
O presidente da República, de Brasília, resolveu a celeuma a seu modo: agora chama "transposição" de "revitalização", como fez terça-feira em discurso no Planalto, ao renovar o pacto "Um Mundo para a Criança e o Adolescente do Semi-Árido Brasileiro", patrocinado pela Unicef.
Um dia antes, o jornal "Valor Econômico" mostrara que a revitalização prometida ao bispo não passa de ficção orçamentária. Programas com tal objetivo foram contemplados com R$ 1,3 bilhão no Programa de Aceleração do Crescimento (PAC). Em 2007 seriam R$ 124 milhões, mas só 1,57% (R$ 1,9 milhão) havia sido empenhado nos primeiros cinco meses do ano.
Não foi a primeira demonstração de que promessa e ação se contradizem. No dia 10, reportagem desta Folha já tinha comprovado a disparidade de gastos com transposição e revitalização. Na primeira rubrica, desde 2005, contavam-se R$ 443 milhões (antes mesmo de iniciar-se a empreitada). Na segunda, menos da metade: R$ 200 milhões.
Mesmo que se suspenda o juízo sobre a obra, a segurança hídrica da população do semi-árido permanece incerta. Em dezembro, a Agência Nacional de Águas (ANA) divulgou previsões sombrias em seu "Atlas Nordeste": 41 milhões de pessoas, em 53% dos municípios do Nordeste, correm risco de ficar sem água suficiente até 2025.
A condição para evitar tal desastre seria deslanchar 546 obras em reservatórios e adutoras, ao custo de R$ 3,6 bilhões. Não deixa de ser sintomático que o "Atlas" evite entrar no mérito da transposição. E a própria similaridade de cifras sugere que subsistem no governo visões conflitantes: para alguns técnicos, mais fundamental que aumentar a disponibilidade de água é capilarizar a distribuição.
Sendo o país como é (basta atentar para os escândalos de promiscuidade entre políticos e empreiteiras), há razões líquidas e certas para temer que a opção pela transposição tenha mais a ver com a predileção desmesurada do Estado por grandes obras do que com a população pobre nordestina que lhe serve de álibi.


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