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HÉLIO SCHWARTSMAN
Bioética
Embora o termo "bioética" ainda
não conste do Aurélio (2ª edição),
trata-se de palavra para a qual se prevê
um futuro movimentado. As questões
éticas propostas pela prática médica
ganham relevância na medida em que
novas técnicas permitem mais intervenções sobre a vida e a morte.
Convém lembrar que os microrganismos patógenos são conhecidos da
medicina há menos de 150 anos; a anti-sepsia data de 1867; os antibióticos
só ganharam difusão a partir de 1941.
Abro aqui um parêntese meio deslocado, mas estou convicto de que a história vale a dispersão. Na década de
1840, Robert Liston, de Londres, foi
responsável pela operação mais desastrada da história. Amputou uma perna em menos de dois minutos, como
convinha nesse período pré-anestesia.
O paciente, como era normal, morreu
de gangrena. Seus golpes de bisturi infectado custaram os dedos de um assistente, que também foi vítima de
sepse. Liston cortou ainda o fraque de
um espectador, que morreu de susto.
Como nesses tempos as pessoas de
bom senso guardavam uma prudente
distância dos médicos, a bioética não
se colocava como uma questão socialmente relevante. As coisas mudaram.
Hoje, a rede pública atinge muita gente e os médicos conhecem bem o funcionamento dos órgãos. Agora, com o
genoma, imagina-se que será possível
saber o que ocorre com o corpo, não
mais no nível dos órgãos, mas das moléculas. Conhecendo em detalhe as
proteínas envolvidas nos processos
biológicos, a capacidade de intervenção tende a crescer muito.
A reflexão ética sobre os limites e as
formas da atuação não vêm acompanhando o ritmo das inovações técnicas. A ética médica baseia-se, desde
Hipócrates, no princípio da beneficência e da não-maleficência. A medida das coisas é o objetivo pretendido.
O problema é que essa lógica ignora a
vontade, ou, melhor, a autonomia do
paciente. Como cabe ao médico definir o que faz bem ao doente, este, no limite, é aniquilado como sujeito.
Agora chuto o pau da barraca. O Código de Ética Médica brasileiro, que
tem força de lei, é um exemplo paroxístico desse arcaísmo. Ele faculta ao
médico mentir sobre o estado de saúde do paciente (art. 59), se considerar
que a notícia pode causar-lhe dano.
Havendo "perigo de vida" (sic), sempre definido pelo médico, o profissional pode fazer o que bem desejar com
o paciente (art. 46).
O leitor talvez considerará que esses
são dispositivos concebidos para casos extremos, pouco usados no dia-a-dia. Infelizmente, não é bem assim.
Esconder o diagnóstico do doente ainda é comum. Nas UTIs e enfermarias,
é frequente profissionais amarrarem o
paciente agitado ao leito, quando bastaria maior vigilância. Isso sem mencionar o desleixo com que o doente é
às vezes informado de sua situação.
Aqui é preciso cautela. Diversos
quadros clínicos afetam a capacidade
de raciocínio e, portanto, a autonomia
do doente. Isso não significa, é óbvio,
que ele se torne um incapaz.
É verdade que têm havido esforços
de humanização. Há iniciativas, inclusive legais, para balancear o desequilíbrio das partes, numa relação que, pelas circunstâncias, é sempre desequilibrada. Mas são avanços ainda tímidos.
É necessário, além de atualizar o código, promover uma mudança de cultura nas escolas médicas. É preciso
que haja uma revolução kantiana, que
firme a noção de sujeito autônomo do
paciente. Afinal, o doente, esclarecido
sobre sua moléstia, é, quase sempre, o
melhor juiz do que lhe convém. Se os
homens não forem capazes de traçar
diretrizes éticas para lidar com o seu
crescente poder de intervenção sobre
a "ordem natural", esse poder corre o
risco de deixar de ser uma bênção para tornar-se uma ameaça.
Hélio Schwartsman é editorialista da Folha.
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