São Paulo, terça-feira, 01 de agosto de 2000


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HÉLIO SCHWARTSMAN

Bioética

Embora o termo "bioética" ainda não conste do Aurélio (2ª edição), trata-se de palavra para a qual se prevê um futuro movimentado. As questões éticas propostas pela prática médica ganham relevância na medida em que novas técnicas permitem mais intervenções sobre a vida e a morte.
Convém lembrar que os microrganismos patógenos são conhecidos da medicina há menos de 150 anos; a anti-sepsia data de 1867; os antibióticos só ganharam difusão a partir de 1941.
Abro aqui um parêntese meio deslocado, mas estou convicto de que a história vale a dispersão. Na década de 1840, Robert Liston, de Londres, foi responsável pela operação mais desastrada da história. Amputou uma perna em menos de dois minutos, como convinha nesse período pré-anestesia. O paciente, como era normal, morreu de gangrena. Seus golpes de bisturi infectado custaram os dedos de um assistente, que também foi vítima de sepse. Liston cortou ainda o fraque de um espectador, que morreu de susto.
Como nesses tempos as pessoas de bom senso guardavam uma prudente distância dos médicos, a bioética não se colocava como uma questão socialmente relevante. As coisas mudaram. Hoje, a rede pública atinge muita gente e os médicos conhecem bem o funcionamento dos órgãos. Agora, com o genoma, imagina-se que será possível saber o que ocorre com o corpo, não mais no nível dos órgãos, mas das moléculas. Conhecendo em detalhe as proteínas envolvidas nos processos biológicos, a capacidade de intervenção tende a crescer muito.
A reflexão ética sobre os limites e as formas da atuação não vêm acompanhando o ritmo das inovações técnicas. A ética médica baseia-se, desde Hipócrates, no princípio da beneficência e da não-maleficência. A medida das coisas é o objetivo pretendido. O problema é que essa lógica ignora a vontade, ou, melhor, a autonomia do paciente. Como cabe ao médico definir o que faz bem ao doente, este, no limite, é aniquilado como sujeito.
Agora chuto o pau da barraca. O Código de Ética Médica brasileiro, que tem força de lei, é um exemplo paroxístico desse arcaísmo. Ele faculta ao médico mentir sobre o estado de saúde do paciente (art. 59), se considerar que a notícia pode causar-lhe dano. Havendo "perigo de vida" (sic), sempre definido pelo médico, o profissional pode fazer o que bem desejar com o paciente (art. 46).
O leitor talvez considerará que esses são dispositivos concebidos para casos extremos, pouco usados no dia-a-dia. Infelizmente, não é bem assim. Esconder o diagnóstico do doente ainda é comum. Nas UTIs e enfermarias, é frequente profissionais amarrarem o paciente agitado ao leito, quando bastaria maior vigilância. Isso sem mencionar o desleixo com que o doente é às vezes informado de sua situação.
Aqui é preciso cautela. Diversos quadros clínicos afetam a capacidade de raciocínio e, portanto, a autonomia do doente. Isso não significa, é óbvio, que ele se torne um incapaz.
É verdade que têm havido esforços de humanização. Há iniciativas, inclusive legais, para balancear o desequilíbrio das partes, numa relação que, pelas circunstâncias, é sempre desequilibrada. Mas são avanços ainda tímidos.
É necessário, além de atualizar o código, promover uma mudança de cultura nas escolas médicas. É preciso que haja uma revolução kantiana, que firme a noção de sujeito autônomo do paciente. Afinal, o doente, esclarecido sobre sua moléstia, é, quase sempre, o melhor juiz do que lhe convém. Se os homens não forem capazes de traçar diretrizes éticas para lidar com o seu crescente poder de intervenção sobre a "ordem natural", esse poder corre o risco de deixar de ser uma bênção para tornar-se uma ameaça.


Hélio Schwartsman é editorialista da Folha.


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