São Paulo, domingo, 01 de agosto de 2004

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PROJETANDO BEBÊS

É ético gerar uma vida humana para servir como banco de tecidos a serem utilizados em procedimentos médicos? A Comissão de Fertilização Humana e Embriologia (HFEA) do governo britânico disse que sim ao liberar a criação dos chamados "bebês projetados".
Colocada com essa crueza, a decisão da HFEA pode parecer inaceitável. Dependendo, porém, de como a informação é apresentada, o que parecia merecer condenação pode tornar-se objeto de solidário apoio.
Tome-se um caso concreto. Em maio do ano passado, a Justiça britânica permitiu que o casal Raj e Shahana Hashimi gerasse, com auxílio de técnicas de reprodução assistida, um embrião cuja medula óssea fosse compatível com a de outro filho, Zain Hashimi, então com quatro anos, que sofre de uma doença (talassemia beta maior) cujo tratamento consiste num transplante de medula. Não haviam sido localizados outros doadores compatíveis. Infelizmente, Shahana acabou sofrendo um aborto espontâneo, e o pequeno Zain segue sem um doador.
A talassemia beta é uma doença hereditária que acomete os glóbulos vermelhos do sangue. Nos casos mais graves, como o de Zain, a vida pode ser prolongada por décadas com transfusões de sangue e uso de drogas. O transplante de medula óssea, porém, melhora as chances de sobrevivência do menino, além de acrescentar-lhe qualidade de vida. Os riscos para o doador são reduzidos.
É difícil deixar de se solidarizar com Zain. Se a seleção de embriões já é admitida para outras finalidades, como evitar doenças genéticas no próprio nascituro, e se a doação de medula é lícita entre irmãos, mesmo menores, é razoável permitir a seleção. Foi o que decidiu a HFEA após considerar que o procedimento de teste dos tecidos (que ocorre quando o embrião tem só oito células) é seguro e que há justificativas médicas que tornam ético todo o processo.
É verdade que o relaxamento das regras para "projetar" bebês no Reino Unido está longe de tornar a técnica menos polêmica. As dúvidas éticas são respeitáveis. Em algum grau, o bebê projetado estaria sendo usado como banco de tecidos, isto é, como um meio, e não como um fim, o que poderia ser considerado imoral.
O problema talvez se resolva com a exploração do grau. Se a idéia fosse gerar um bebê apenas para roubar-lhe os tecidos e depois descartá-lo, a objeção se colocaria, mas não é o que ocorre. Em princípio, o bebê doador será mais um filho do casal. E não podemos tentar julgar as motivações que levam alguém a querer um filho. Esse é o reino da mais pura subjetividade e assim deve permanecer.
Também há quem tema que a seleção médica de embriões seja o primeiro passo para a seleção estética e mesmo para a manipulação genética. Esse de fato é um risco. Mas a possibilidade de que alguém faça algo errado não pode servir de pretexto para proibir o que parece certo.
A discussão pública sobre o que é ou não aceitável diante das novas perspectivas abertas pela ciência precisa ser ampliada. Os britânicos a estão travando. No Brasil, infelizmente, o assunto segue quase ignorado.


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