São Paulo, quarta-feira, 01 de setembro de 2004

Texto Anterior | Próximo Texto | Índice

TENDÊNCIAS/DEBATES

Estranhas boas razões

LUIZ CARLOS BRESSER-PEREIRA

O Brasil parece ter abandonado ou talvez esquecido a idéia do desenvolvimento, tão longínqua é essa experiência. Os responsáveis, porém, não se furtam às explicações. A economia brasileira vai bem, dizem eles: crescer 4% este ano é melhor do que nada. A taxa de juros é alta -observam-, mas isso reflete a falta de segurança dos que emprestam. E vai continuar elevada -arrematam-, para enfrentar a ameaça da inflação e atrair capitais. O déficit público vai se manter elevado apesar do enorme superávit primário, mas o problema não são os juros, e sim a Constituição, que cria vinculações obrigando a gastar no social.
Esse é o Brasil das explicações e das boas razões. O Brasil semi-estagnado, onde os pobres ficam mais pobres e os ricos, mais ricos. O Brasil cujo patrimônio público está sendo capturado: cerca de 5% do PIB vai para rentistas, através de taxas de juros três vezes maiores do que pagam países com igual ou pior classificação de risco. Mas, segundo a lógica das boas razões, há uma razão geral para tudo isso, que nada teria a ver com a política econômica adotada -afinal, essa política tem o apoio esclarecido dos grandes países e das grandes instituições multilaterais... O Brasil estaria pagando pelos erros do nacionalismo e do desenvolvimentismo.


O nacionalismo é condenado aqui, mas os países ricos, encabeçados pelos EUA, continuam mais nacionalistas do que nunca


Estranho e incompreensível esse Brasil das boas razões. Nos tempos do nacionalismo (1930-1980), o Brasil pensava com a própria cabeça; parece que, agora, é melhor pensar com a cabeça alheia. Nos tempos do desenvolvimentismo, a economia crescia de forma extraordinária e, apesar da concentração de renda, os salários e os padrões de vida melhoravam para todos. Estranho e incompreensível esse mundo de dois discursos. O nacionalismo é condenado aqui, mas os países ricos, encabeçados pelos EUA, continuam mais nacionalistas do que nunca. Veja-se a dureza com que negociam conosco seus interesses comerciais. Vejam-se as eleições americanas, em que os candidatos precisam provar todos os dias que defenderão a qualquer custo os interesses nacionais para serem eleitos.
Os países ricos são nacionalistas porque sabem o que nós esquecemos: que o desenvolvimento é sempre o resultado de uma estratégia nacional. Que é o resultado de uma ação coletiva, visando tornar os cidadãos mais prósperos, mais livres e mais seguros. Que envolve, portanto, solidariedade entre seus membros. Empresários, trabalhadores e classes médias profissionais nas empresas e no governo terão certamente conflitos, mas existe uma solidariedade básica que constitui a nação. As nações, assim como as famílias ou as empresas, só existem porque são instrumentos de ação coletiva, são instituições que viabilizam a realização de objetivos comuns.
Não é isso, naturalmente, que os países ricos nos dizem. Nacionalistas não seriam simplesmente aqueles que buscam construir o Estado-nação, ou que procuram identificar língua, etnia e tradições comuns com organização do Estado nacional, mas que agem de forma autoritária e violenta. De acordo com essa visão, o nacionalismo seria o oposto do liberalismo, não obstante tenham sido essas as duas ideologias básicas que a classe empresarial inglesa, francesa, americana, alemã e japonesa usou para construir suas nações. Foi com a construção de Estados nacionais fortes que os países ricos lograram e continuam logrando se desenvolver.
Algumas vezes essa verdade escapa. Francis Fukuyama, notável intelectual conservador dos EUA, declara, de forma suficientemente independente: "Na verdade, a falta de poder e a pobreza no mundo atual não se devem ao excesso de poder dos Estados-nações, mas à sua fraqueza. A solução não é minar a soberania, mas construir Estados mais fortes no mundo em desenvolvimento" (Mais!, 1º/7/04). Mas essa é a exceção. A regra nos países ricos é "puxar a escada"; é muito naturalmente, muito razoavelmente, sem nenhum caráter conspiratório, dar conselhos aos países em desenvolvimento (senão fazer imposições, quando o país se deixa endividar e cai sob o controle do FMI ou do Banco Mundial) que eles próprios não adotaram nem adotam. É enfraquecer seus Estados, é convencer suas elites de que o conceito de nação perdeu sentido.
Nesse processo de desorganização dos Estados nacionais periféricos, o acirramento do conflito entre a esquerda e a direita desempenhou o papel de facilitador. Uma das piores conseqüências do regime autoritário de 1964 foi ter levado a esquerda brasileira a negar a possibilidade de um empresariado nacional. Ao fazer isso, alienou um empresariado que tendia para a dependência, mas que já dera mostras de ser capaz de superá-la e construir uma nação. E o jogou nos braços da ideologia globalista que, a partir do final dos anos 70, veio do Norte, anunciando o fim ou a irrelevância dos Estados nacionais.
Inviabilizado o acordo básico entre empresários, trabalhadores e burocracia de Estado, perdido o conceito de nação, abandonado o projeto nacional de desenvolvimento, o país ficou indefeso diante das "boas razões". Boas razões que o impedem de pensar e o manterão estagnado e dependente. No tempo do desenvolvimentismo nacionalista, quando o Brasil era uma nação, havia o desenvolvimento, ainda que injusto; havia a indignação e a esperança. Hoje só ficou a injustiça.
A esperança, porém, não está perdida. Para recuperá-la precisamos voltar a nos pensar como nação.

Luiz Carlos Bresser-Pereira, 70, é professor de economia da FGV-SP. Foi ministro da Ciência e Tecnologia e da Administração Federal e Reforma do Estado (governo FHC), além de ministro da Fazenda (governo Sarney).


Texto Anterior: Frases

Próximo Texto: Alon Feuerwerker: Clemenceau, a guerra e o jornalismo

Índice


Copyright Empresa Folha da Manhã S/A. Todos os direitos reservados. É proibida a reprodução do conteúdo desta página em qualquer meio de comunicação, eletrônico ou impresso, sem autorização escrita da Folhapress.