São Paulo, terça-feira, 01 de outubro de 2002

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VINICIUS MOTA

A real preservação do real

O real, ou a teimosia dos brasileiros em manter uma moeda nacional, é a diferença entre o Brasil e a Argentina. Mas essa diferença boa parte dos investidores estrangeiros insiste em não enxergar. Agora, o debate sobre o Brasil na cena dos agentes financeiros internacionais gira em torno da necessidade ou não da reestruturação da dívida brasileira.
Mas a qual dívida esses analistas se referem? De tão básica, a pergunta já revela o tamanho da ignorância. Na Argentina do "currency board", falar em dívida pública era, preponderantemente, falar em obrigações saldáveis em moeda estrangeira. No Brasil, onde o real nunca foi livremente conversível, faz bem ao intelecto distinguir o que é devido em dólar do que é devido em real. Como a crise brasileira é de divisas, suponho que os analistas mais informados estejam preocupados com a solvência externa. A preocupação, no contexto atual, faz sentido.
O Brasil exporta pouco em relação a suas obrigações externas. Ou seja, a nossa capacidade de trazer dólares através da produção doméstica é baixa. Então quer dizer que o governo, numa situação de secura de financiamento externo, terá de reestruturar sua dívida externa? Aqui é preciso introduzir nova distinção: a dívida externa que hoje mais pressiona o dólar -por ter prazos mais curtos, juros mais altos e maior dificuldade de rolagem- é privada, e não pública. O Estado não é obrigado a se imiscuir nessa relação entre particulares -ainda que essa seja uma recusa cínica, pois foi a política econômica que induziu ao financiamento privado no exterior.
Um outro time de analistas, menos sofisticados, mas nem por isso menos sagazes, prefere medir a solvência do Brasil pela relação entre a dívida pública líquida (interna e externa) e o PIB. O pressuposto, aí, é de que, quanto maior for esse índice, mais próximo se torna o governo de aplicar um calote em sua dívida interna.
O Estado, em tese, pode ser levado ao calote interno se os títulos de sua dívida forem repudiados pelos credores; se os agentes decidirem não mais financiá-lo. Para que isso ocorra no caso brasileiro, porém, será preciso que se abra uma alternativa de investimento para os credores do Estado -a maioria deles pessoas físicas e jurídicas brasileiras, que consomem em reais. Teria de surgir, portanto, um outro ativo financeiro suficientemente seguro e líquido para migrar. É piada, com todo o respeito pela Bolsa, cogitar que haja uma corrida relevante em busca de papéis privados.
De todo modo, o fato é que essa alternativa aos papéis do governo, até hoje, não apareceu. Não há sinal de corrida bancária ou de descrédito pelos títulos da dívida pública. Uma revoada maciça para o dólar-papel, a essa altura do câmbio, é improvável. As saídas de recursos pela famigerada CC-5, até agosto pelo menos, não mostram tendência explosiva.
Emprestar ao Estado continua sendo um bom negócio para a elite endinheirada deste país -até porque o poder público oferece garantias contra todas as modalidades imagináveis de prejuízo. Portanto, têm carradas de razão alguns economistas brasileiros esforçados que se dedicam a esclarecer os investidores estrangeiros sobre a peculiaridade do Brasil: a dívida em reais é sagrada, ainda que a preservação desse status implique crescimento medíocre e concentração de renda.


Vinicius Mota é editor de Opinião. Hoje, excepcionalmente, o artigo de Roberto Mangabeira Unger é publicado na seção "Tendências/Debates".



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