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VINICIUS MOTA
A real preservação do real
O real, ou a teimosia dos brasileiros em manter uma moeda nacional, é a diferença entre o Brasil e a
Argentina. Mas essa diferença boa
parte dos investidores estrangeiros insiste em não enxergar. Agora, o debate
sobre o Brasil na cena dos agentes financeiros internacionais gira em torno da necessidade ou não da reestruturação da dívida brasileira.
Mas a qual dívida esses analistas se
referem? De tão básica, a pergunta já
revela o tamanho da ignorância. Na
Argentina do "currency board", falar
em dívida pública era, preponderantemente, falar em obrigações saldáveis
em moeda estrangeira. No Brasil, onde o real nunca foi livremente conversível, faz bem ao intelecto distinguir o
que é devido em dólar do que é devido
em real. Como a crise brasileira é de
divisas, suponho que os analistas mais
informados estejam preocupados
com a solvência externa. A preocupação, no contexto atual, faz sentido.
O Brasil exporta pouco em relação a
suas obrigações externas. Ou seja, a
nossa capacidade de trazer dólares
através da produção doméstica é baixa. Então quer dizer que o governo,
numa situação de secura de financiamento externo, terá de reestruturar
sua dívida externa? Aqui é preciso introduzir nova distinção: a dívida externa que hoje mais pressiona o dólar
-por ter prazos mais curtos, juros
mais altos e maior dificuldade de rolagem- é privada, e não pública. O Estado não é obrigado a se imiscuir nessa relação entre particulares -ainda
que essa seja uma recusa cínica, pois
foi a política econômica que induziu
ao financiamento privado no exterior.
Um outro time de analistas, menos
sofisticados, mas nem por isso menos
sagazes, prefere medir a solvência do
Brasil pela relação entre a dívida pública líquida (interna e externa) e o
PIB. O pressuposto, aí, é de que, quanto maior for esse índice, mais próximo
se torna o governo de aplicar um calote em sua dívida interna.
O Estado, em tese, pode ser levado
ao calote interno se os títulos de sua
dívida forem repudiados pelos credores; se os agentes decidirem não mais
financiá-lo. Para que isso ocorra no
caso brasileiro, porém, será preciso
que se abra uma alternativa de investimento para os credores do Estado -a
maioria deles pessoas físicas e jurídicas brasileiras, que consomem em
reais. Teria de surgir, portanto, um
outro ativo financeiro suficientemente seguro e líquido para migrar. É piada, com todo o respeito pela Bolsa, cogitar que haja uma corrida relevante
em busca de papéis privados.
De todo modo, o fato é que essa alternativa aos papéis do governo, até
hoje, não apareceu. Não há sinal de
corrida bancária ou de descrédito pelos títulos da dívida pública. Uma revoada maciça para o dólar-papel, a essa altura do câmbio, é improvável. As
saídas de recursos pela famigerada
CC-5, até agosto pelo menos, não
mostram tendência explosiva.
Emprestar ao Estado continua sendo um bom negócio para a elite endinheirada deste país -até porque o
poder público oferece garantias contra todas as modalidades imagináveis
de prejuízo. Portanto, têm carradas de
razão alguns economistas brasileiros
esforçados que se dedicam a esclarecer os investidores estrangeiros sobre
a peculiaridade do Brasil: a dívida em
reais é sagrada, ainda que a preservação desse status implique crescimento
medíocre e concentração de renda.
Vinicius Mota é editor de Opinião. Hoje, excepcionalmente, o artigo de Roberto Mangabeira Unger é publicado na seção "Tendências/Debates".
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