São Paulo, terça-feira, 01 de outubro de 2002

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TENDÊNCIAS/DEBATES

Entre Papai Noel e Maricota, o povo

CIRO GOMES

"Candidato, o que o senhor tem a falar sobre a pesquisa divulgada hoje?"
"Candidato, seu adversário x descobriu que a estratégia de bater no adversário y deu errado, segundo a última pesquisa do instituto z. O que o senhor acha disso?"
Ou ainda: "As pesquisas dizem que o senhor tem de mudar a estratégia, o programa de TV e o discurso. Quando o senhor vai fazer isso?".
Infelizmente, os três exemplos rasteiros dados acima resumem simploriamente as "grandes questões" a que tive de responder ao longo de quase duas centenas de entrevistas coletivas concedidas durante a campanha presidencial de 2002. É uma lástima que as coisas tenham se dado assim. É um desserviço da mídia ao país.
Na eleição em que se revelou decisiva a cobertura da TV aberta, veículo mais acessível e democrático numa nação ferida pelo analfabetismo e pela fome e que ainda corre em busca da plenitude do Estado democrático de Direito, o coração do debate político não pulsou em razão de fatos. Foram as versões e as distorções que deram o tom dessa campanha.
Muitas vezes, senti-me protagonista central de um processo que pode ser definido como uma encenação esquizofrênica em que ora se é chamado a encenar o Papai Noel, ora é preciso encarnar a Maricota.
O Papai Noel faz-se mister ante repórteres e públicos que exigem propostas com números mirabolantes como os tais 8 milhões ou 10 milhões de empregos que foram prometidos pelo PSDB e pelo PT nessa campanha. Não pus número em minha garantia de que, ajustado o processo econômico, o país voltaria a crescer e a gerar vagas no mercado de trabalho. Em razão disso, fui sacrificado por jornalistas que enxergaram omissão onde só há coerência. Tive de cortar um dobrado para convencê-los de que mentiam aqueles que prometiam o céu.
Já a Maricota é figura mais simpática à mídia, desde que os políticos se resignem a esse papel. Uma vez encarnado, ele não foge mais da personagem. Ela ganha o sorriso plácido, complacente e cúmplice dos jornalistas. Insisti em não reduzir minha biografia a isso.
Tornei-me político porque tenho convicção na solidez de minhas idéias e na importância delas para o longo caminho de mudanças que o Brasil precisa trilhar no rumo da justiça social. Jamais imaginei que, para isso, teria de pagar pedágio a jornalistas, colunistas ou apresentadores de TV que trocam simpatia por futrica.


A crise cambial é a febre sintomática de uma infecção generalizada que fere de morte o modelo econômico adotado


Durante a campanha, expus minhas idéias e travei bons debates ideológicos com excelentes repórteres, editores, diretores de redação. Mas revelou-se vão o esforço de debater soluções para um país que está mergulhado numa crise cambial. Ela é apenas a febre sintomática de uma infecção generalizada que fere de morte o modelo econômico adotado dogmaticamente. Essa peste já expõe suas chagas sociais: menor taxa média de crescimento da economia brasileira em 50 anos, 11,7 milhões de desempregados, contração da massa salarial em mais de 20%, informalização de 58% do mercado de trabalho e colapso na infra-estrutura.
O debate sobre essas mazelas não permeou a campanha, foi embaçado pelo conchavo assustador entre marqueteiros e demagogos. E isso terminou amplificado pela complacência da média da grande mídia.
Parafraseando Carlos Drummond de Andrade, que já foi parafraseado por Miguel Arraes em um discurso de 1961, hoje tenho as mesmas mãos limpas do início do processo eleitoral, mas agora sei que encerro nelas o sentimento do mundo. Brasil afora, descobri como são díspares os países existentes na vida real e no imaginário de seus meios de comunicação.
Na última série de entrevistas concedidas pelos presidenciáveis no "Jornal Nacional", da TV Globo, fomos levados a responder a perguntas enviadas por eleitores. Como eram precisas, cristalinas e curiosas aquelas questões. Limitavam-se a querer saber nossas idéias. Levavam-nos a entrar de cabeça no bom debate, na boa guerra. Não nos perguntavam se éramos bons ou maus companheiros de nossas companheiras. Não fui instado a responder sobre a legitimidade da minha crença na escola pública -o povo não tem dúvidas sobre ela.
O Brasil encerrado na caixinha de plástico azul que guardava essas perguntas era o Brasil real. Levado ao encontro dos homens que se imaginam capazes de presidi-lo, mesmo que pelo intermédio do mais poderoso veículo de massas, revelava-se uma nação singela povoada de curiosos que só querem ouvir propostas, boas idéias. É esse povo que me estimula a ser político. É essa nação que desejo liderar.
Insisto em fazer isso sem me resignar ao reducionismo biográfico de Papais Noéis ou de Maricotas.


Ciro Gomes, 44, advogado, é candidato da Frente Trabalhista (PPS-PDT-PTB) à Presidência da República. Foi prefeito de Fortaleza (1988 a 1990), governador do Ceará (1991 a 1994) e ministro da Fazenda (governo Itamar Franco).



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