São Paulo, sexta-feira, 01 de outubro de 2004

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TENDÊNCIAS/DEBATES

Democracia e autoritarismo

MICHEL TEMER

A história constitucional brasileira revela que o país passa por ciclos temporários de democracia e autoritarismo. Foi assim desde a Constituição republicana de 1891, que continha preceitos preservadores de direitos individuais e garantias democráticas. Em 1930 começaram desajustes institucionais que levaram à centralização autoritária, na Carta de 1937. Esse período persistiu até 1945, quando caiu o regime ditatorial, reinaugurando-se a democracia por meio da Constituição de 1946.
O período entre 46 e 64, embora tumultuado, alicerçava-se em Constituição de locução democrática. Em abril de 1964, golpe de Estado implanta sistema autoritário, estiolando liberdades individuais com desprezo absoluto pela separação dos Poderes. O Poder Executivo ganha força e, no particular, a figura do presidente da República. Tal situação perdura até 1982, quando começam a ser eleitos governadores de oposição, pela via direta, fazendo crescer o movimento constituinte de que resultou a Constituição de 1988, pormenorizada quanto aos princípios democráticos.
Esse breve relato visa confirmar a assertiva contida na primeira sentença desta reflexão. É curioso notar: quando se buscava a democracia ou o autoritarismo, tudo se dava com apoio popular. Creio, por isso, ser oportuna análise acurada do momento que vivemos.


A história constitucional brasileira revela que o país passa por ciclos temporários de democracia e autoritarismo


Com a experiência de 20 anos de exercício democrático, convém atentar para o histórico constitucional brasileiro.Tudo como prevenção. Tudo para impedir que, sociologicamente, a tendência popular caminhe em direção que possibilite o autoritarismo. Faço essa afirmação na convicção de que nem sempre a autoridade constituída o deseja fazer, mas a onda popular, os conflitos políticos, as desavenças institucionais, a insegurança pública e a insegurança social, a ausência de condições dignas de subsistência, as críticas abertas, observações oposicionistas mais agressivas e o reduzido apego a garantias democráticas podem induzir autoridades a se achar no direito de agredir esses valores e, a partir daí, reinstalar o regime centralizador, caminho próximo à ditadura.
Longe o catastrofismo, vale o alerta. Atitudes como o controle da imprensa e o controle da produção de cinema e teatro, a despeito de serem inconstitucionais, porque ferem o princípio da livre expressão, começam a revelar inquietação sociológica que tem sido traço marcante da história política brasileira. A tentativa de romper o sigilo profissional do advogado e do psicólogo constitui agressão inominável às liberdades individuais.
Nem falo da quebra do sigilo telefônico, que se tornou rotina aplaudida mesmo por aqueles que se dizem arautos da liberdade. Alguns juízes autorizam o "grampeamento" de linha telefônica (até aí a permissão é constitucional), facultando à polícia "grampear" números daqueles que dialoguem com o "grampeado" original, independentemente de nova manifestação judicial (o que é nitidamente inconstitucional). A autorização judicial é prevista na Constituição exatamente para impedir que inocentes vejam devassada sua vida privada.
Até mesmo o vazamento de informações da CPI do Banestado pode levar à vulnerabilidade de direitos individuais daqueles que estejam com sua vida patrimonial regularizada. O desejo de cercear a atividade do Ministério Público, que, nos termos constitucionais, é defensor da sociedade e das liberdades democráticas, é outro sintoma da trilha para chegar a regime fechado e centralizador. Não quero, neste tópico do Ministério Público, dizer que ele tenha o poder de presidir inquéritos investigatórios -a meu ver, competência da polícia. Não entrarei no mérito da discussão. Diria que o Ministério Público não é o condutor de inquérito policial, mas é seu principal agente provocador e impulsionador. As discussões em torno de suas competências visam, contudo, inibi-lo. Mais uma vez, a demonstração de centralismo.
E o que falar de direitos como o adquirido, o ato jurídico perfeito e a coisa julgada? A classe política e parte da consciência jurídica não lhes dão crédito.
É importante relembrar algumas obviedades e até repisá-las. Movimentos populares fizeram o Estado respeitar direitos mínimos do indivíduo. Três revoluções gloriosas sedimentaram esses direitos. A Inglesa, com vários atos obtidos em favor dos súditos; a Independência dos Estados Unidos, de 1776, com a Declaração de Virgínia, e a Francesa, de 1779, da qual nasceu a Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão. Nesses Estados e em tantos outros, jamais se imaginou vulnerar ou eliminar tais conquistas libertárias. Em outros, não. A vocação concentradora persistiu ao longo do tempo.
Por isso, e sempre como alerta, mais uma lembrança, agora pelo poema de Eduardo Alves da Costa "No caminho com Maiakóvski", em que, depois de dizer que "eles" colheram uma flor do nosso jardim, "sem dizermos nada", pisaram nas flores e mataram o nosso cão, "sem dizermos nada", arrancam a nossa voz. E a palavra final é de amargura: "Porque não dissemos nada, já não podemos dizer nada".

Michel Temer, 64, professor de direito constitucional da PUC-SP, deputado federal pelo PMDB-SP, é presidente nacional do partido e candidato a vice-prefeito na chapa de Luiza Erundina (PSB). Foi presidente da Câmara dos Deputados e secretário da Segurança Pública (governos Montoro e Fleury) e de Governo (gestão Fleury) do Estado de São Paulo.


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