São Paulo, domingo, 01 de outubro de 2006

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De eleitor a cidadão

O vigor da democracia não depende só do voto, mas da consolidação de uma cultura política ativa, crítica e vigilante

Marcada, de início, por um clima de apatia e desencanto, a campanha pela sucessão presidencial chega a este 1º de outubro cercada de suspense, exacerbações e incertezas.
Insistir na importância do voto como instrumento de expressão da vontade popular parece menos necessário hoje do que há algumas semanas. Cresceu o calor da disputa -especialmente da disputa presidencial. Com 50% das intenções de votos válidos, a vitória de Luiz Inácio Lula da Silva no primeiro turno, diz o Datafolha, está ameaçada como nunca esteve ao longo da campanha.
O pano de fundo, entretanto, não se altera. Numa das maiores democracias do planeta, é patente o descrédito que o eleitorado dedica ao conjunto das lideranças políticas. Estão aptos a votar no dia de hoje 125.913.479 eleitores; quantos o fariam se o voto não fosse obrigatório?
Serão escolhidos o presidente da República, 27 governadores de Estado, 27 senadores, 513 deputados federais, 1.059 deputados estaduais e 24 deputados distritais. Quantos, dentre estes, sobreviveriam a uma investigação rigorosa de seu patrimônio e métodos de campanha?
No total, 18.721 candidatos disputam vagas nesta eleição. Qual o número dos que apresentaram alguma proposta consistente ao eleitor? Dentre estes, quais estariam dispostos a manter os compromissos assumidos? Quantos não procuram a absolvição do eleitorado diante de escândalos e crimes, recentes ou não, em que estiveram envolvidos?
Esta é a quinta eleição presidencial desde a redemocratização. Em número de pleitos consecutivos, a "Nova República" já supera o período democrático anterior (1945-1964). Ao longo dos últimos 18 anos, desde a promulgação da Constituição de 1988, as instituições democráticas fincaram raízes e se desenvolveram. O pleito de hoje representa, apesar de tudo, um passo rumo à sua consolidação, que só ocorrerá após décadas e décadas de continuidade institucional.
Para que isto de fato aconteça, mais do que o voto é necessário. Faltam ao cidadão brasileiro mecanismos efetivos de controle sobre seus representantes. Falta a cristalização de uma cultura permanente de questionamento e vigilância, de crítica e de auto-organização política.
Num país em que se tornou rotina, por exemplo, o candidato favorito a um posto majoritário fugir de debates eleitorais pela TV; em que o presidente da República não se vê obrigado, pelas responsabilidades do cargo, a conceder regularmente entrevistas coletivas à imprensa; e em que, por outro lado, a maioria dos eleitores não se recorda em quem votou para deputado federal, são evidentes os sinais de descompasso entre a prática da discussão política e o cotidiano da população.
Desencanto e conformismo, assim, mostram-se duas faces de uma mesma moeda; as queixas contra o comportamento das lideranças políticas combinam-se a uma constante disposição para a indulgência.
Sem eleições, não há democracia. Mas a democracia não se resume ao dia do pleito. Depende de que cada eleitor, uma vez feita sua escolha nas urnas, possa mobilizar-se para que seu voto não se transforme em letra morta nas mãos dos que, como sempre, sobrevivem de iludi-lo e esbulhá-lo. A democracia brasileira conta com quase 126 milhões de eleitores; seu vigor e solidez exige, entretanto, que sejam, de fato, 126 milhões de cidadãos.


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