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De eleitor a cidadão
O vigor da democracia não depende só do voto, mas da consolidação de uma cultura política ativa, crítica e vigilante
Marcada, de início, por
um clima de apatia
e desencanto, a
campanha pela sucessão presidencial chega a este
1º de outubro cercada de suspense, exacerbações e incertezas.
Insistir na importância do voto
como instrumento de expressão
da vontade popular parece menos necessário hoje do que há algumas semanas. Cresceu o calor
da disputa -especialmente da
disputa presidencial. Com 50%
das intenções de votos válidos, a
vitória de Luiz Inácio Lula da Silva no primeiro turno, diz o Datafolha, está ameaçada como nunca esteve ao longo da campanha.
O pano de fundo, entretanto,
não se altera. Numa das maiores
democracias do planeta, é patente o descrédito que o eleitorado
dedica ao conjunto das lideranças políticas. Estão aptos a votar
no dia de hoje 125.913.479 eleitores; quantos o fariam se o voto
não fosse obrigatório?
Serão escolhidos o presidente
da República, 27 governadores
de Estado, 27 senadores, 513 deputados federais, 1.059 deputados estaduais e 24 deputados
distritais. Quantos, dentre estes,
sobreviveriam a uma investigação rigorosa de seu patrimônio e
métodos de campanha?
No total, 18.721 candidatos disputam vagas nesta eleição. Qual
o número dos que apresentaram
alguma proposta consistente ao
eleitor? Dentre estes, quais estariam dispostos a manter os compromissos assumidos? Quantos
não procuram a absolvição do
eleitorado diante de escândalos e
crimes, recentes ou não, em que
estiveram envolvidos?
Esta é a quinta eleição presidencial desde a redemocratização. Em número de pleitos consecutivos, a "Nova República" já
supera o período democrático
anterior (1945-1964). Ao longo
dos últimos 18 anos, desde a promulgação da Constituição de
1988, as instituições democráticas fincaram raízes e se desenvolveram. O pleito de hoje representa, apesar de tudo, um passo
rumo à sua consolidação, que só
ocorrerá após décadas e décadas
de continuidade institucional.
Para que isto de fato aconteça,
mais do que o voto é necessário.
Faltam ao cidadão brasileiro mecanismos efetivos de controle
sobre seus representantes. Falta
a cristalização de uma cultura
permanente de questionamento
e vigilância, de crítica e de auto-organização política.
Num país em que se tornou rotina, por exemplo, o candidato
favorito a um posto majoritário
fugir de debates eleitorais pela
TV; em que o presidente da República não se vê obrigado, pelas
responsabilidades do cargo, a
conceder regularmente entrevistas coletivas à imprensa; e em
que, por outro lado, a maioria
dos eleitores não se recorda em
quem votou para deputado federal, são evidentes os sinais de
descompasso entre a prática da
discussão política e o cotidiano
da população.
Desencanto e conformismo,
assim, mostram-se duas faces de
uma mesma moeda; as queixas
contra o comportamento das lideranças políticas combinam-se
a uma constante disposição para
a indulgência.
Sem eleições, não há democracia. Mas a democracia não se resume ao dia do pleito. Depende
de que cada eleitor, uma vez feita
sua escolha nas urnas, possa mobilizar-se para que seu voto não
se transforme em letra morta
nas mãos dos que, como sempre,
sobrevivem de iludi-lo e esbulhá-lo. A democracia brasileira conta
com quase 126 milhões de eleitores; seu vigor e solidez exige, entretanto, que sejam, de fato, 126
milhões de cidadãos.
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