São Paulo, sexta-feira, 01 de novembro de 2002

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JOSÉ SARNEY

Que país é este?

Harry Hopkins é um personagem de grande importância na história americana. Ele foi o braço direito de Roosevelt na implementação das medidas do New Deal, o extraordinário programa social criado para combater o desemprego e a fome, depois da famosa recessão dos anos 30. Hopkins também foi o mais próximo e mais forte colaborador de Roosevelt na condução da Segunda Guerra Mundial. Morava com o presidente na Casa Branca e em Hyde Park, a residência particular. Tornou-se íntimo amigo de Churchill e interlocutor privilegiado de Stálin.
Hopkins era um homem de origem modesta. Quando foi designado por Roosevelt para ir a Moscou, logo depois da invasão alemã, e acertar a ajuda americana à então União Soviética, ele contava que, ao subir a grande escada de cem degraus do Kremlin, estava possuído de grande emoção. Pesava o seu lado pessoal e ele dizia para si mesmo: "Eu, filho de um seleiro do Iowa, investido de uma missão tão importante e tão decisiva para a liberdade no mundo?". De repente, afastou essa tentação da modéstia pessoal e se respondeu: "Não sou eu, o responsável por isso é meu país, minha pátria. Não há nada de mais em mim, há tudo de grandioso nos Estados Unidos". Depois, não pensou mais no seu pai seleiro, nem em si próprio, seu filho. Pensou na sua pátria, na sua missão.
Lembrei-me desse episódio, que li há muitos anos, para associá-lo à vitória de Lula. Sempre vi no presidente eleito a história de sua vida, sua saga nordestina, sua identidade operária, da pobreza à glória política. Quando o apoiei, o jornalismo investigativo procurou uma referência pessoal minha contra o candidato do PT e não encontrou. É que, como intelectual e político, sempre considerei sua biografia um patrimônio do país. Não há nada de lisonja gratuita nessa afirmação. Ela é impessoal, porque vejo no Lula a extraordinária mobilidade social do Brasil. Qual o país do mundo ocidental que pode ostentar uma sociedade capaz de produzir o fenômeno Lula? Que tem igualdade de oportunidades capaz de assegurar essa ascensão, de não barrá-la pela força ou pelo preconceito? Não sei onde mais um processo dessa profundidade seria assimilado e digerido num clima de convivência e de festa como vivemos.
Todo o povo brasileiro, de todas as classes e tendências, a favor ou contra Lula, descobriu um orgulho reprimido em sua vitória. Todos se sentem participantes dela. É o sentimento de uma grande conquista nacional. Uma consciência diferente e generosa. Essa é a alegria que estamos testemunhando. O fundamental é a esperança de que essa alegria não murche.
O Brasil muito fez por todos nós, e exemplarmente por Lula. É hora de darmos uma trégua ao vício nacional do pessimismo e da famosa sensação de estar "à beira do abismo". De, como disse o presidente eleito, recuperarmos a auto-estima, que, no passado, se chamava "orgulho patriótico".
Como na história de Harry Hopkins, abandonemos o seleiro ou o retirante. Pensemos no que é a fabulosa história deste país, construída no milagre da convivência e na cultura da alegria, que fez essa mudança profunda -ninguém se engane sobre a importância- sem nenhuma violência nem apelo a soluções extremas. Até o câmbio baixou!
Como perguntava Francelino Pereira, nos anos 70, "que país é este?". Respondemos:
- O Brasil.


José Sarney escreve às sextas-feiras nesta coluna.

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