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TENDÊNCIAS/DEBATES
A modernização do Judiciário deve ter verba privada?
NÃO
Sede de privatização
JOSÉ CARLOS DIAS
Cumpre ao Poder Executivo, especificamente ao Ministério da Justiça, ocupar-se, entre tantas atribuições
que se enfeixam em sua vocação republicana, de representar o ponto de
maior aproximação com o Judiciário.
Ora, ninguém poderá dizer que as coisas da Justiça devem ser cuidadas com
exclusividade pelos seus agentes, integrantes do Judiciário, advogados, promotores e serventuários da Justiça. E os
fregueses dela, seus destinatários, seus
beneficiários ou suas vítimas?
Acaso os jurisdicionados, os pedintes
e credores, os réus e os malfeitores, as
vítimas, as crianças carentes e os pimpolhos travessos antigamente acoimados de delinquentes, os pais aflitos, as
minorias humilhadas, todos esses que
formam a legião dos que amargam nas
filas dos guichês, nas salas de espera de
advogados que ou pagam o pato pela
justiça denegada ou disso se locupletam, apostando na lerdeza e na ineficiência, acaso todos esses e mais tantos
não podem dizer e palpitar sobre as coisas da Justiça? O chamado rol dos culpados nada tem para dizer, propor ou reclamar? Será que, fora dos autos e do
palco, as partes não integram o cenário?
Sim, é um direito de todos e de cada
um esperar do juiz um sim, ainda que
de tal ato lhe advenha um não, justo ou
injusto. Pior é o silêncio da inércia, da
espera que não desperta.
Quando ocupamos o Ministério da
Justiça, dedicamo-nos a discutir e propor uma profunda reforma do Judiciário, junto com os outros Poderes.
O tema continua vivo: enfatizar, mais
do que nunca, a agilização da Justiça,
com reformas procedimentais, com enxugamento das matérias que devem ser
submetidas ao julgamento das cortes. O
nosso empenho foi para serem pautadas propostas ousadas e modernas.
Pois bem, até que ponto o envolvimento da sociedade e dos interesses privados pode participar do processo de
depuração e modernização, de barateamento e democratização da justiça? Poderia a iniciativa privada participar de
tal processo? Em que nível?
É saudável a participação de entidades
e instituições que não integram o chamado mundo estatal no processo gestatório de uma Justiça forte e democrática. É saudável que seja assim, estimulando propostas, patrocinando concursos, como é o caso do Prêmio Innovare,
mencionado por Sérgio Renault e promovido por entidades de juízes, pelo
Ministério da Justiça e pela empresa Vale do Rio Doce. Ao lado desse concurso
reservado aos juízes, seria importante
que todos os segmentos da sociedade
fossem instigados a propor melhorias
no serviço judiciário. E por que não?
O que me preocupa é a sede de privatização e da chamada terceirização que
passou a ser obsessiva mania dos que
"milagreiam" a salvação do poder público, como se a eficiência fosse incompatível com as coisas do Estado, como
se no mundo do mercado imperassem a
sabedoria e a eficácia, como se as empresas não falissem...
O sacrilégio, no entanto, está evidente
quando se tenta pôr no balcão ou na
mesa de operações os serviços que são
funções de Estado. Tomemos como
exemplo a Justiça penal -dela me
aproximo mais por deformação e formação profissional. A execução penal é
tarefa do juiz, do promotor, com a presença indispensável do advogado, com
os conselhos da comunidade presentes.
É um ideal ainda não alcançado, mas
não se deve desprezar o que é fundamental para pensar num plano de readaptação do egresso à sociedade. E tal
ideal é lei e torna inadmissível a terceirização do problema, ou seja, abrir, em
hasta pública, concorrência para que as
penas sejam cumpridas com a participação direta da iniciativa privada.
O exemplo nefasto dos EUA aí está. A
privatização dos presídios tem estimulado a exacerbação das penas, de forma
a contar-se com um número crescente
de mão-de-obra barata, escrava mesmo. São mais de 2 milhões de presidiários, trabalhadores sem liberdade de
reivindicar condições mínimas de trabalho. Nas chamadas prisões privadas,
ficam os ditos presos bonzinhos, os taxados de comportamento exemplar,
condição para serem considerados
bons operários, na visão do empresário-carcereiro. Os presos chamados de
"sangue ruim" é melhor que saiam, que
não maculem as fábricas engradadas,
que trabalhem na rua, empunhando as
ferramentas letais que sabem manejar.
E tudo isso por que motivo? Barateamento de custos, dizem os arautos defensores do sistema. Porém a experiência no Brasil é péssima, os custos são
muito maiores do que nos presídios administrados pelo poder público. Enfim,
é a inversão total que se estabelece: os
que não oferecem risco ficam presos, os
perigosos ficam soltos. Não há como
tergiversar: questões como disciplina,
segurança, individualização da pena devem estar sempre sob a responsabilidade do juiz, amparado pelos administradores penais, pois é ele o senhor da sentença, que poderá mantê-la inalterada
ou alterá-la em benefício do réu, se este
se mostrar merecedor do benefício.
A existência de trabalho nos presídios
é essencial com oficinas que podem
profissionalizar e produzir, de forma a
preparar os presos para o mundo exterior, mas sem que signifique a exacerbação da mais-valia no seu grau superlativo nem represente concorrência perversa em detrimento dos que vivem à
cata de trabalho, num mundo em que o
desemprego e o crime se cortejam.
Há tarefas que são institucionais, que
são próprias do Estado: distribuir Justiça é tarefa que não pode ser compartilhada ou terceirizada; tromba com interesses que podem ser postos na balança.
Isso significaria desequilibrar ainda
mais a Justiça, cada vez mais cega.
José Carlos Dias, 64, é advogado criminalista. Foi ministro da Justiça (governo FHC).
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