São Paulo, sábado, 01 de novembro de 2008

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TENDÊNCIAS/DEBATES

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O governo deve cortar gastos públicos como uma das medidas para enfrentar a crise econômica?

NÃO

A hora é do governo

JOÃO SICSÚ

GASTAR É preciso, viver não é preciso. Fernando Pessoa imortalizou a frase, a ele atribuída, "navegar é preciso, viver não é preciso". Muitos interpretam que o poeta deu à primeira sentença o sentido da razão, já que para navegar é preciso usar instrumentos, é preciso exatidão. A segunda não está relacionada ao desprezo pela vida. Ao contrário, a ênfase está na inexatidão da vida, na riqueza de rotas por onde navegar. Bússolas tornam a navegação exata. Mas a vida não tem bússolas, o que possui são temores, paixões, incertezas e possibilidades diversas.
A frase imortalizada é pura abstração. É ousadia utilizá-la para tratar de economia. Contudo, a crise financeira instituiu um jogo semelhante à conhecida tensão poética: razão "versus" emoção. A crise chegou gerando transtornos. Os governos reagiram socorrendo instituições financeiras.
Mas a sensação de temor permanece.
Ainda que não vejam novas velas sendo rasgadas e governos recosturando-as, os navegantes já estão assustados.
As instituições financeiras foram e serão socorridas, mas empresários, trabalhadores e banqueiros estão temerosos. Eles vão tomar a decisão que consideram mais prudente: cortar gastos. Os bancos vão reduzir as concessões de crédito, os empresários vão arquivar projetos de novos investimentos e os trabalhadores vão fazer poupança por precaução.
O setor privado age segundo a sentença "viver não é preciso", escolhendo a forma mais adequada de sobreviver a algo que não vê com exatidão, mas de cuja gravidade tem percepção.
A racionalidade do setor privado é eivada de emoção -essa é a riqueza da vida. O resultado dessas ações racionais é que, se todos recolhem suas velas, as naus tendem a desacelerar.
Mas as economias não podem estagnar. Para haver reação, alguém deve gritar: "Içar velas, navegar é preciso". É o que o setor público deve gritar e fazer: gastar os seus recursos é preciso. É hora de enfrentar os temores da vida privada com a exatidão das bússolas dos governos.
Se os governos não gastarem, suas economias ficarão à deriva. Em alguns casos, poderão parar. Em outros, podem naufragar. Portanto, como disse o Nobel Paul Krugman, "fica claro agora que resgatar os bancos é apenas o começo: a economia não financeira também precisa desesperadamente de ajuda. (...) No momento, uma elevação nos gastos do governo é o remédio correto...".
A sugestão de Krugman é conhecida, é a saída keynesiana: i) gastos em infra-estrutura, que mobilizam volumes elevados de recursos e empregam vastos contingentes de trabalhadores; e ii) gastos nas diversas formas de transferência de renda aos que têm alta propensão a gastar o que recebem -por exemplo, ampliação de valor e cobertura de programas sociais e aumento real do salário mínimo.
Aviso aos navegantes: as finanças públicas brasileiras estão com apenas 0,58% de déficit nominal/PIB ao longo deste ano. A Comunidade Européia estabelece, para tempos de normalidade, que seus membros podem fazer até 3% de déficit/PIB. Portanto, o governo brasileiro está em "condições européias" de fazer uma política de gastos agressiva.
Em 2008, o governo fez até agora um superávit primário de 5,8% do PIB, muito superior à meta oficial, que é 4,25%. Nos primeiros oito meses do ano, o governo fez 24,3% do PIB em despesas correntes. Em igual período do ano passado, fez 25,3%.
Com pessoal e encargos, gastou 4,37% do PIB de janeiro a agosto. Em igual período de 2007, havia gasto 4,45%.
Em suma, quando o setor privado estava gastando, o governo estava economizando. Agora que o setor privado está se retraindo, é hora de o governo gastar.
Neste momento, se o governo agir com a lógica privada da retração, provocará uma desaceleração econômica. E se assim continuar agindo, poderá provocar uma recessão.
Alguns dirão que não podemos fazer déficits. Mas Krugman já respondeu: "A coisa responsável a fazer, agora, é fornecer à economia o apoio de que ela precisa. Não está na hora de nos preocuparmos com o déficit". O resultado esperado é que o setor privado perceba que as tempestades se dissolveram e icem suas velas.
Portanto, o título deste artigo poderia ter sido "gastar é preciso para viver", um lema keynesiano dos momentos de crise.


JOÃO SICSÚ é diretor de Estudos Macroeconômicos do Ipea (Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada) e professor do Instituto de Economia da UFRJ. É co-autor e organizador do livro "Arrecadação (de onde vem?) e Gastos Públicos (para onde vão?)".


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