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São Paulo, segunda-feira, 01 de dezembro de 2003

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BORIS FAUSTO

Os três macaquinhos

Meus amigos Flávio Manhães e Lucila têm um sítio no caminho do sertão de Ibiúna. Para evitar estranhezas, lembro que, embora a cidade de Ibiúna se situe a uns 70 km de São Paulo, seu município, à margem da expansão cafeeira e, depois, da industrialização, contém, sim, um sertão. É todo um mundo de acesso difícil, com seus caipiras, suas falas próprias e suas devoções.
Para ficar em um exemplo, em algum ponto existe uma pequena capela, que guarda a imagem de são Sebastião. Todos os anos, os fiéis levam o santo à cidade, no dia de seu aniversário, percorrendo muitos quilômetros na ida e na volta. Quem é de fora, como o Manhães, e ainda assim é escolhido para carregá-lo durante parte do trajeto, sabe estar recebendo uma deferência inestimável, creia ou não no santo, seja católico, presbiteriano, judeu, budista, agnóstico ou ateu. Excluo os evangélicos, em pleno combate pela salvação das almas, e os islâmicos, por não existirem e, se existissem, para evitar encrencas.
Voltemos porém ao sítio, aonde se chega por uma picada que mal se vislumbra no capim ralo, saindo de uma sinuosa estradinha de asfalto. Como indicar aos convidados do fim de semana a picada quase invisível? Manhães, pessoa refinada, jamais imaginaria uma dessas placas banais indicando o "rancho do sossego", o "repouso do guerreiro" ou a "casa do vovô". Pintou, sobre uma tábua de madeira, um desenho inspirado numa pintura pré-colombiana -em que três macaquinhos negros se destacam de um fundo amarelo- como inconfundível marco indicativo.
A placa não durou muito tempo. Apareceu destruída, coisa que Manhães e Lucila atribuíram a um ato corriqueiro de vandalismo. Idêntica placa, pintada com capricho, foi colocada no mesmo lugar. Insistência inútil, pois ela também foi destruída, até com fúria maior do que a precedente. Na motivação dos "vândalos" deveria existir algo mais.
Pergunta daqui, pergunta dali, o caseiro acabou se abrindo: "O senhor me desculpe, mas também que idéia a sua de pintar o 666 na entrada do sítio". "666, que história é essa?", estranhou o Manhães, sem entender nada. "Ora, doutor, o 666, o nome escondido de Satanás, a besta do Apocalipse, ou o senhor nunca leu a Bíblia?" Aí o Manhães entendeu, e como, pois anunciara aos quatro ventos suas negociações com o demônio. De fato, os longos rabos negros dos macaquinhos compunham um gritante 666 sobre um fundo amarelo, e a figura dos animais desaparecia de cena.
A história pode suscitar questões acadêmicas ligadas à "gestalt" -a psicologia das formas-, recuperando um tema meio esquecido. Ou, ainda, permite explorar os caminhos em que o erudito e o popular se cruzam ou se desentendem. Mas o melhor mesmo é ouvir a voz imaginária do caipira: o doutor quase fez um pacto com o demônio, mas foi alertado e se arrependeu a tempo. A tempo de continuar levando nos ombros a imagem de são Sebastião.


Boris Fausto escreve às segundas-feiras nesta coluna.


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