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São Paulo, segunda-feira, 01 de dezembro de 2003

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TENDÊNCIAS/DEBATES

Obstáculos na luta contra a Aids

VICENTE AMATO NETO e JACYR PASTERNAK

As dificuldades para combater a epidemia de infecção pelo HIV e a doença que daí decorre, a Aids, podem ser englobadas nos três grupos a seguir especificados.
1) Biológicas - Dependem dos mecanismos que envolvem a infecção e a relação do vírus com o sistema imunológico do indivíduo que ele ataca. No contexto estão retrovírus que levam à enfermidade após período de incubação muito longo, usualmente de cinco a dez anos. Enquanto o infectado encontra-se assintomático, ele não sente absolutamente nada; algo como 10% a 15% dos afetados pelo HIV têm acometimento agudo autolimitado, que usualmente desaparece sozinho e que nem sempre leva o paciente à procura de assistência médica. Assintomático, mas seguramente contagiante após a primeira semana seguinte ao contato sexual, quando o vírus é detectável na circulação.
Tal fato faz com que um contaminado possa contagiar muitas pessoas durante longo período. No caso do HIV, nesses cinco a dez anos ele é transmitido de modo que, mesmo que mate seu hospedeiro depois, isso não atrapalha a disseminação.
O vírus, quando o paciente recebe as medicações hoje disponíveis, pode desaparecer completamente do sangue, para persistir em reservatórios que ainda não foram todos identificados e lá continuar se reproduzindo, sucedendo que a suspensão do tratamento, ainda que a carga viral esteja indetectável no sangue, fará o agente causal volta à circulação. O vírus provavelmente está em local ao qual as drogas não têm acesso.
Os remédios com os quais contamos agora não são incapazes de matar todos os vírus e os retrovírus, que, pelo sistema de transcrição que possuem, desenvolvem enorme variabilidade genética: a cada repique, uma nova geração diferente aparece. Claro que a imensa maioria dos vírus assim replicados, com erro, é inviável e a variabilidade imensa que disso decorre garante que resistências a todas as drogas vão acabar ocorrendo -é apenas uma questão de tempo.


A infecção pelo HIV expande-se em países muito pobres, onde o sistema de saúde é precário
Os medicamentos usados desencadeiam, sem exceção, efeitos colaterais e exigem aderência para serem eficientes -a adesão ao tratamento precisa ser da ordem de 90% da dose receitada, durante muitos anos, o que é muito difícil de ser conseguido mesmo em pacientes bem informados. São muitas pílulas, que requerem organização para serem devidamente tomadas, o que nem sempre é possível com pacientes mais pobres, menos informados ou com estilos de vida que não favorecem essa disciplina. Também convém lembrar que provavelmente não existirá vacina útil tão cedo, se é que a teremos algum dia.
2) Econômicas - A infecção pelo HIV expande-se em países muito pobres, onde o sistema de saúde é precário e o gasto a propósito por habitantes está em níveis de US$ 1 por mês ou menos do que isso. Com essa verba não é possível executar tratamento adequado e, como Bill Clinton já disse e publicou no "New York Times", "se não houver devida assistência terapêutica fica muito complicado fazer prevenção, porque ninguém quer ser testado se o resultado for apenas um "parabéns, o senhor está com Aids e vire-se'".
Isso é o constatado em quase todas as regiões da África. Nações em desenvolvimento podem enfrentar bem a infecção pelo HIV -e o Brasil nesse ponto é exemplo. Dos indivíduos de áreas subdesenvolvidas que tomam a medicação anti-HIV fornecida pelo governo, gratuitamente, mais da metade está por aqui. Note-se que o Brasil é considerado país de renda média, muito longe dos níveis catastróficos de rendimentos vigentes em terras africanas.
A infecção pelo HIV favorece a expansão de velhas pragas, como a tuberculose, que também não andavam bem controladas nesses lugares marcados por recursos escassos. A infecção igualmente afeta de maneira perversa pessoas em fase da vida na qual são mais produtivas e na idade reprodutiva, garantindo assim impacto econômico considerável. Na África, em certas populações uma geração inteira foi destruída e nelas permanecem quase só crianças e velhos. Ainda mais, a mortalidade infantil é muito grande.
3) Sociológicas - O estigma da Aids e o preconceito são muito comuns na África. No entanto perduram entre nós e em outras eventualidades, até mesmo fazendo com que possíveis contaminados não procurem assistência médica. Opiniões levianas, como a inacreditável imprudência do cardeal e dos que afirmam a incompetência da camisinha na proteção contra a infecção pelo HIV, ou informações falsas, como a que no Brasil, anos atrás, atribuiu risco de contágio através de mosquitos, podem ser extremamente prejudiciais.
Defender a castidade, a abstinência sexual ou atividades congêneres em virtude de motivos religiosos é viável, sem necessidade de usar argumento cientificamente falso, pois o preservativo de boa qualidade constitui recurso valioso preventivamente. Não obstante fazer campanhas contra a Aids exclusivamente focadas no uso da camisinha é insuficiente, convindo destacar que esse método de barreira afigura-se precioso contra a disseminação da praga, sobretudo se não forem esquecidas outras premissas, ilustradas pela responsabilidade no relacionamento sexual.
Também a repetição da idiotice de que o HIV não é a causa da Aids, que chegou a convencer pelo menos por algum tempo o presidente da África do Sul, representa mais um desastre. Em acréscimo, frisamos que rápida expansão da epidemia em países onde houve desagregação social e quebra do sistema de saúde é extremamente evidente.
Como ficamos afinal?
Não podemos negar o advento de grandes progressos na luta contra a Aids. Não podemos, na verdade, negar as dificuldades para enfrentar doença só prevenível mediante mudanças de comportamento, algo muito difícil de conseguir em saúde pública. É possível, entretanto, obter algum sucesso em caráter individual, e quiçá em algum grau coletivo, com educação. Acreditamos que o modelo brasileiro de tratamento deva ser adotado por mais países, incluindo os africanos.
Desta vez não é brincadeira nem ufanismo, convindo estimular o resto do mundo a copiar o que efetivamos. Há promessas de países ricos para financiar algo desse tipo e existem empresas na África do Sul que, na deficiência de atitudes do governo, resolveram elas mesmas tratar seus funcionários ou dependentes, até para estimular menos "turnover" de pessoal e mais lucros. Todavia as promessas de dar essa verba por enquanto estão como intenções não realizadas -mas quem sabe um dia.


Vicente Amato Neto, 76, médico infectologista, é professor emérito da Faculdade de Medicina da USP. Jacyr Pasternak, 63, médico infectologista, é doutor em medicina pela Unicamp.


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