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TENDÊNCIAS/DEBATES
Alguma nostalgia
RODOLFO KONDER
Um tigre nasceu no acostamento
da via Anhanguera, dentro de um
caminhão do circo Atari.
A notícia me deixou deprimido. É
provável que o bisavô do filhote recém-nascido, um tigre real que imobilizava
todos os seres da floresta com o seu bramido, tenha enfrentado caçadores poderosos e guerreiros ilustres. Talvez seu
avô tenha sobrevivido, com coragem e
tenacidade, aos ataques de marajás entediados, protegidos no dorso de elefantes brancos. Mas a saga de seu pai certamente já se confundiu com os tempos
opacos do cativeiro. Os dias de esplendor dos velhos tigres definitivamente
acabaram. Hoje, eles perderam a fúria e
a dignidade. Nascem no acostamento
da Anhanguera, condenados a uma vida mambembe.
As últimas décadas têm sido de mudanças aceleradas. Corredeiras da história. A urbanização, os avanços tecnológicos, a democratização do ensino, as
telecomunicações, a universalização
dos direitos humanos, as preocupações
ecológicas e a globalização da economia
foram os arados, atrelados a uma estrela
-o sonho de um mundo mais civilizado. As transformações, porém, não exibem apenas uma face ensolarada. Mostram também, dialeticamente, um lado
sombrio, negativo, ameaçador.
A multiplicação dos atos de terrorismo é um exemplo claro de que estamos
igualmente perdendo com as mudanças. A volta do tribalismo, os inúmeros
conflitos étnicos e religiosos, o crescimento das desigualdades sociais, o surgimento das megalópoles e a expansão
dos cartéis da droga, além do desaparecimento de espécies e de línguas, acentuam a sensação de que avançamos para o abismo. Um novo holocausto nos
observa, à espreita.
Nesse quadro inquietante de mudanças, tenho a impressão de que a dignidade está na lista das perdas. A dignidade
dos tigres, dos homens, dos líderes. Ela
murcha, definha diante dos nossos
olhos. No plano das grandes lideranças
políticas, por exemplo, já tivemos nomes como Roosevelt, Churchill, De
Gaulle, Gandhi, Nehru, Palme, Trudeau. Agora, George W. Bush e Vladimir Putín governam Estados Unidos e
Rússia. Na França, Jacques Chirac está
no poder. Na Alemanha, Gerhard
Schröeder. Na China, quem dirige a
China? Mao Tse-Tung era autoritário,
violento, mas tinha grandeza e dignidade. Até Fidel Castro, que depôs o ditador Fulgêncio Batista e ocupou Havana,
em 1959, com promessas dignas e postura de herói, hoje parece um velho tio
excêntrico, de presença incômoda e
constrangedora, com suas fardas apertadas e seus discursos intermináveis.
O vírus do declínio moral contaminou diversos segmentos e inúmeros personagens da
nossa aventura
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O vírus do declínio moral contaminou diversos segmentos e inúmeros
personagens da nossa aventura. Na minha adolescência, eu e meus amigos jogávamos sinuca no Bar do Zé, em Copacabana, e bebíamos cerveja no Veloso e
no Lagoa, em Ipanema. Mesmo os sinuqueiros e os bêbados contumazes daquelas madrugadas tinham uma dignidade que se foi.
Meu avô paterno, o "coronel" Marcos
Konder, foi prefeito de Itajaí, Santa Catarina, durante 16 anos. Administrou a
cidade de maneira honesta e morreu
num hospital, sem dinheiro para pagar
a conta (saldada pelo genro, o jurista
Evandro Lins e Silva). Meu avô materno, José Maria Coelho, foi prefeito de
Barra do Piraí. Católico praticante, alma
generosa, morreu admirado até pelos
adversários políticos.
Ambos -Marcos e José Maria- me
faziam acreditar que as pessoas de idade, naqueles tempos, tinham a integridade e a sabedoria que esperávamos encontrar nas pessoas de idade.
Se os corruptos da minha adolescência eram geralmente jovens e poucos,
hoje eles se multiplicam como coelhos e
têm frequentemente a cabeça branca.
Mentem sem nenhum pudor. Sorriem,
na televisão. Representam nossos dias
opacos de cativeiro e baniram para
sempre o brilho, o esplendor da vida
pública. Fragilizaram a política e abriram as portas para a chegada dos "salvadores da pátria".
Rodolfo Konder, 64, jornalista e escritor, é diretor cultural da UniFMU. Foi secretário da Cultura
do município de São Paulo (gestões Paulo Maluf
e Celso Pitta).
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