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São Paulo, segunda-feira, 01 de dezembro de 2003

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TENDÊNCIAS/DEBATES

Alguma nostalgia

RODOLFO KONDER

Um tigre nasceu no acostamento da via Anhanguera, dentro de um caminhão do circo Atari.
A notícia me deixou deprimido. É provável que o bisavô do filhote recém-nascido, um tigre real que imobilizava todos os seres da floresta com o seu bramido, tenha enfrentado caçadores poderosos e guerreiros ilustres. Talvez seu avô tenha sobrevivido, com coragem e tenacidade, aos ataques de marajás entediados, protegidos no dorso de elefantes brancos. Mas a saga de seu pai certamente já se confundiu com os tempos opacos do cativeiro. Os dias de esplendor dos velhos tigres definitivamente acabaram. Hoje, eles perderam a fúria e a dignidade. Nascem no acostamento da Anhanguera, condenados a uma vida mambembe.
As últimas décadas têm sido de mudanças aceleradas. Corredeiras da história. A urbanização, os avanços tecnológicos, a democratização do ensino, as telecomunicações, a universalização dos direitos humanos, as preocupações ecológicas e a globalização da economia foram os arados, atrelados a uma estrela -o sonho de um mundo mais civilizado. As transformações, porém, não exibem apenas uma face ensolarada. Mostram também, dialeticamente, um lado sombrio, negativo, ameaçador.
A multiplicação dos atos de terrorismo é um exemplo claro de que estamos igualmente perdendo com as mudanças. A volta do tribalismo, os inúmeros conflitos étnicos e religiosos, o crescimento das desigualdades sociais, o surgimento das megalópoles e a expansão dos cartéis da droga, além do desaparecimento de espécies e de línguas, acentuam a sensação de que avançamos para o abismo. Um novo holocausto nos observa, à espreita.
Nesse quadro inquietante de mudanças, tenho a impressão de que a dignidade está na lista das perdas. A dignidade dos tigres, dos homens, dos líderes. Ela murcha, definha diante dos nossos olhos. No plano das grandes lideranças políticas, por exemplo, já tivemos nomes como Roosevelt, Churchill, De Gaulle, Gandhi, Nehru, Palme, Trudeau. Agora, George W. Bush e Vladimir Putín governam Estados Unidos e Rússia. Na França, Jacques Chirac está no poder. Na Alemanha, Gerhard Schröeder. Na China, quem dirige a China? Mao Tse-Tung era autoritário, violento, mas tinha grandeza e dignidade. Até Fidel Castro, que depôs o ditador Fulgêncio Batista e ocupou Havana, em 1959, com promessas dignas e postura de herói, hoje parece um velho tio excêntrico, de presença incômoda e constrangedora, com suas fardas apertadas e seus discursos intermináveis.


O vírus do declínio moral contaminou diversos segmentos e inúmeros personagens da nossa aventura
O vírus do declínio moral contaminou diversos segmentos e inúmeros personagens da nossa aventura. Na minha adolescência, eu e meus amigos jogávamos sinuca no Bar do Zé, em Copacabana, e bebíamos cerveja no Veloso e no Lagoa, em Ipanema. Mesmo os sinuqueiros e os bêbados contumazes daquelas madrugadas tinham uma dignidade que se foi.
Meu avô paterno, o "coronel" Marcos Konder, foi prefeito de Itajaí, Santa Catarina, durante 16 anos. Administrou a cidade de maneira honesta e morreu num hospital, sem dinheiro para pagar a conta (saldada pelo genro, o jurista Evandro Lins e Silva). Meu avô materno, José Maria Coelho, foi prefeito de Barra do Piraí. Católico praticante, alma generosa, morreu admirado até pelos adversários políticos.
Ambos -Marcos e José Maria- me faziam acreditar que as pessoas de idade, naqueles tempos, tinham a integridade e a sabedoria que esperávamos encontrar nas pessoas de idade.
Se os corruptos da minha adolescência eram geralmente jovens e poucos, hoje eles se multiplicam como coelhos e têm frequentemente a cabeça branca. Mentem sem nenhum pudor. Sorriem, na televisão. Representam nossos dias opacos de cativeiro e baniram para sempre o brilho, o esplendor da vida pública. Fragilizaram a política e abriram as portas para a chegada dos "salvadores da pátria".


Rodolfo Konder, 64, jornalista e escritor, é diretor cultural da UniFMU. Foi secretário da Cultura do município de São Paulo (gestões Paulo Maluf e Celso Pitta).


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