São Paulo, Domingo, 02 de Janeiro de 2000


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Olhar o Brasil


O que leva uma sociedade a querer olhar-se? Ou ainda o que a leva a recusar ver-se a si própria?


MANOLO FLORENTINO

Quais os maiores livros brasileiros do século 20? Essa pergunta foi feita recentemente a meia centena de importantes cientistas sociais por um também renomado colega de profissão. As cinco obras mais citadas foram, pela ordem, "Formação Econômica do Brasil" (1954), de Celso Furtado; "Casa Grande e Senzala" (1933) e "Sobrados e Mocambos" (1936), ambos de Gilberto Freyre; "Os Donos do Poder" (1958), de Raymundo Faoro; e "Raízes do Brasil" (1936), de Sérgio Buarque de Hollanda.
Um primeiro e mais óbvio caminho para compreender tal eleição é reconhecer o monumental valor dessas obras. Afinal, trata-se de clássicos que, na sequência da tradição ensaística do século 19, causaram enorme impacto entre os letrados dos anos 30 e 50. Furtado, Gilberto, Faoro e Sérgio Buarque ousaram construir respostas verdadeiramente originais a algumas das mais inquietantes indagações daquelas décadas -especialmente as referentes à nossa identidade mestiça, à pobreza material e à exclusão social que desde sempre nos aflige.
Contudo esse conjunto de preferências pode ser lido de outro modo, mais vinculado aos gostos e às idiossincrasias dos dias atuais do que às demandas da primeira metade do século que se esvai. Observe-se que alguns dos ícones das ciências humanas brasileiras elegeram como obras seculares textos que têm o Brasil por objeto. É igualmente sintomático o fato de, nesses trabalhos, nosso país somente adquirir inteligibilidade plena quando inscrito no tempo. Logo é plausível imaginar que a escolha de livros com esses perfis expressem um desejo -o de retomar a reflexão sobre o país a partir não de migalhas, de aspectos parciais e muitas vezes desprovidos de qualquer relevância intelectual, como tem ocorrido nas últimas décadas, mas, sim, tendo por base perfis razoavelmente assentados no tempo, repetições que, de modo duradouro e profundo, se inscreveram em nossa maneira de ser e de nos conceber.
Se o desejo de autocompreensão de algum modo denota a presença de uma lacuna, encontramo-nos em uma situação no mínimo inusitada: vivemos em um país que frequentemente teima em ultrapassar a capacidade de análise de sua intelligentsia. Ilação que, por sua vez, remete à trágica possibilidade de estarmos momentaneamente incapacitados de simbolizar-nos no tempo e, portanto, que a perigosa falta de adscrição de um sentido ao existir coletivo torne efetiva a ameaça de desintegração do próprio existir.
Acefalia intelectual ou complexidade do objeto? A justificar a primeira hipótese está um movimento de modo algum próprio do Brasil. A morte razoavelmente recente de pensadores do quilate de Raymond Aron, de Jean-Paul Sartre, de Roland Barthes, de Michel Foucault e mesmo de Fernand Braudel, apenas para citar cinco gigantes dedicados por décadas a fio a pensar o Homem (assim mesmo, com agá maiúsculo), indica que a acefalia pode ser planetária. É significativo que, dos intelectuais dessa cepa, reste apenas o nonagenário Claude Lévi-Strauss, numa prova cabal de que os ícones do pensamento ocidental nem sequer estão deixando herdeiros de peso.
Contudo nada indica existir qualquer fenômeno biológico que torne uma geração mais burra do que as anteriores. Por isso talvez a acefalia seja apenas aparente, com a lacuna mencionada decorrendo basicamente da complexificação do objeto Brasil. Sabemos, entretanto, que nem nosso país nem qualquer Homem é historicamente mais complexo hoje do que há, digamos, 70 anos. O que ocorre é que atualmente possuímos conhecimentos mais pormenorizados dos múltiplos aspectos de ambos, o que dificulta, mas não oblitera -se pensarmos bem, até facilita- a construção intelectual do "todo".
A pergunta então seria: por que a intelligentsia contemporânea, ao optar pela especialização do saber, visando conhecer em detalhes os fenômenos humanos e sociais, no meio do caminho contentou-se com o conhecimento dos detalhes e abdicou da apreensão do conjunto? Alternativamente, o que leva uma sociedade a querer olhar-se? Ou ainda o que a leva a recusar ver-se a si própria? É provável que uma velha analogia ofereça algumas pistas. Toda mulher, antes de mirar o espelho, já sabe o que verá. Olha-se apenas para que o reflexo especular confirme a imagem que ela tem de si mesma. Por isso as bonitas estão sempre em busca de espelhos, e as feias os evitam. Estas sabem de antemão que não vão gostar da imagem refletida. Logo o Brasil é hoje, no mínimo, um país feio.


Manolo Florentino, 41, é professor de história na Universidade Federal do Rio de Janeiro e autor de "Em Costas Negras" (Companhia das Letras).



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