São Paulo, Domingo, 02 de Janeiro de 2000


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Uma palavra indígena, 500 anos depois


Queremos descobrir o Brasil com nossos próprios códigos, buscando recriar um novo tempo


MARCOS TERENA

Talvez nós, os povos indígenas, devêssemos participar das diversas iniciativas que se apresentam como as grandes "comemorações" dos 500 anos do Brasil. Porém não devemos simplesmente esquecer nossa verdadeira história como primeiros habitantes destas terras, diante da chegada dos colonizadores que vieram com a missão de conquistar novos territórios e dominar novos povos.
Naquela época não tínhamos moeda, mas tínhamos riquezas como o bem-viver. Não conhecíamos a fome e a miséria, muito menos a camada social mais baixa em que estamos dentro da sociedade nacional.
Assim, mais de 5 milhões de irmãos e mais de 800 povos inteiros foram dizimados, deixando um rastro que marca a formação de mais de 160 milhões de pessoas, de várias origens.
Pelo simples fato de sermos diferentes, trataram-nos como preguiçosos, obstáculos ao desenvolvimento, pagãos e selvagens.
Os ensinamentos que aprendemos com nossos pais, em nossas famílias, foram a palavra integral -como a vida e o ambiente. Por isso fomos incompreendidos. O "homem branco" que conhecemos jamais conseguiu pronunciar uma só palavra inteira. Tivemos dificuldades de compreender esses novos códigos, como a meia palavra e a meia verdade -usada por muitos políticos- ou os números -usados pelos tecnocratas para justificar seus atos diante de um povo com fome de justiça e muitas vezes abandonado à miséria por falta de políticas sociais e econômicas.
Na questão indígena, especificamente, lamentamos que até hoje o governo federal não tenha sabido tratar nossas diferentes realidades. Afirmamos, então, que erram aqueles que nos olham com olhares economicistas, que só conseguem enxergar em nossas terras o ouro, o urânio, as águas e a biodiversidade. A velocidade, para índios e brancos, em todos os sentidos, é muito diferente. Enquanto a do homem branco navega como o pensamento, a dos índios caminha como a noite e o dia, levando uma enorme desvantagem. Mesmo assim, queremos assegurar a verdade indígena de proteger e promover o meio ambiente para a liberdade, e não para a destruição do amanhã. Não temos ouvido que os índios têm direito à vida, e é necessário ouvir isso, porque no dia seguinte a todas as comemorações dos 500 anos, das mais lindas às mais solenes, nossas vidas devem continuar.
Queremos descobrir o Brasil com nossos próprios códigos, buscando recriar um novo tempo, pois, apesar de tudo, o milagre da vida é real e isso deveria florescer e ser cultivado também no coração do homem branco. Nós, os índios, não queremos continuar como os grandes mudos da história, pois o milagre dos sonhos também existe e precisamos ter mentes fortes para concretizá-lo.
O que dizer então? Como traduzir o mundo indígena para o homem branco? Como explicar o significado do sol, das estrelas e dos ventos e a importância da terra? O certo é que jamais se poderá destruir essa magia que nos dá a possibilidade da vida a cada dia. Nós, os povos indígenas, sentimos uma grande responsabilidade para com o homem branco, principalmente com as futuras gerações. Queremos construir um mundo melhor, pois o Grande Criador fez as pessoas para que pudessem olhar para cima, admirar a vida. Como entender então a violência da humanidade, inclusive quando se impõe a paz por meio da guerra entre irmãos?
Talvez o governo tenha um segredo guardado para apresentar nos 500 anos do Brasil para as 220 sociedades indígenas que vivem em 11% do território nacional, em vez de simplesmente lavar as mãos diante dessa grande dívida social que não admite moratória. Uma dívida imprescritível que parecerá onerosa à nação, mas que para nós é pequena, diante de tudo que tivemos que suportar para construir esse país. Os governos cometeram grandes equívocos em nome da proteção aos nossos direitos, como a falta de uma política indigenista e sua incapacidade de compreender nosso mundo. O enfraquecimento do único órgão governamental que possuímos, a Fundação Nacional do Índio, é um exemplo que certamente afetará a vida de milhares de famílias que vivem em nossas longínquas aldeias.
Hoje queremos, como povos indígenas, estabelecer um verdadeiro tratado de compromisso com o governo federal, como a demarcação de todas as terras e um plano socioeconômico e cultural para nossas comunidades, educando-o para ouvir a voz indígena, como já ocorre em vários fóruns internacionais. Queremos, como parte do Brasil indígena 500 anos, estabelecer um pacto com os demais brasileiros, negros e brancos, caminhando em direção ao futuro no rastro de nossos ancestrais, com respeito mútuo e como atores de um novo tempo, em busca da verdade da vida integral e do espírito humano.


Marcos Terena, 46, é índio pantaneiro do Mato Grosso do Sul, filho do povo Terena e coordenador geral dos Direitos Indígenas da Funai.



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