São Paulo, quinta-feira, 02 de janeiro de 2003

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OTAVIO FRIAS FILHO

Agora é real

O discurso de posse de Lula como presidente efetivo não apresentou novidade em relação ao que vinha sendo dito desde a eleição. Mantém-se uma linha bifronte, que dá satisfações tanto à esquerda como à direita. Seu governo começa sob a marca dessa ambiguidade, indefinição para alguns, habilidade para outros, a perdurar até que os fatos forcem numa das duas direções.
O presidente prometeu fazer uma reforma agrária, antiga bandeira da esquerda, mas assegurou a propriedade produtiva. Repetiu que criar empregos será uma "obsessão" e elogiou a estrutura empresarial do país. Deu ênfase à América Latina, mas propôs cooperação madura com os Estados Unidos. E repisou a luta contra a fome, prioridade que não divide opiniões nem desperta controvérsias.
Vamos admitir, o que parece plausível, que a maioria dos integrantes da equipe de governo mantenha suas convicções de esquerda. Vamos admitir que tenham feito amplas concessões em nome da necessidade de governar um país complexo e plural. E que tenham em mente as experiências traumáticas, das quais alguns deles participaram, de governos de esquerda que não tinham lastro centrista.
Impossível prever que tipo de acidente poderá deslocar o governo para a esquerda de onde ele provém. Mas não existe dúvida de que a rotina do poder reforça a inclinação "de direita", ou centrista. Como lembrou Espiridião Amin há pouco, citando frase tão verdadeira quanto de autoria incerta, o poder se parece com o violino, que se toma com a esquerda e se toca com a direita.
Há várias razões para isso. Instalado no governo, todo grupo passa a ter uma preocupação de fato prioritária: manter-se no lugar com a menor erosão possível do próprio poder. É um fato sociológico, que não depende da boa vontade dos personagens em questão. Providências táticas, destinadas a assegurar esse objetivo permanente, cada vez mais se impõem a rumos estratégicos.
Esse impulso, realista ou concessivo, conforme se preferir qualificá-lo, deverá ser acentuado no caso atual. O cenário econômico condena as autoridades a praticar uma política semelhante à do governo que sai, e o grupo que entra, nessa "troca de paulistas", só chegou ao poder depois de resolver governar com o centro, assim como Fernando Henrique optara por governar com a direita.
Do restante se encarregará a atmosfera que cerca todo governo. De um lado, áulicos sempre prontos a oferecer um espelho sorridente ao governante e a estimular sua mania de perseguição. De outro, lobbies profissionais voltados a envolver as autoridades, sobretudo as novatas, em projetos nos quais o interesse público e o privado aparecem emaranhados. Entre ambos, as mil tentações do poder.
Com todo o simbolismo histórico da posse, que redime parte da história nacional, agora começam os problemas, as decisões que não poderão ser contornadas por meio de golpes de retórica ou sentimentalismo publicitário. O drama será preservar o apoio do centro sem perder o rumo das mudanças anunciadas, aprender a administrar o dia-a-dia sem se deixar engolir pela rotina e pela tática. Muitos tentaram, poucos terão conseguido.


Otavio Frias Filho escreve às quintas-feiras nesta coluna.


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