São Paulo, quinta-feira, 02 de janeiro de 2003

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TENDÊNCIAS/DEBATES

Tempo de reflexão

OSWALDO GIACOIA JR.

Encerramos 2002 com boa disposição de ânimo, causada pelo sentimento de estar vivendo um dos mais importantes momentos de nossa história. Entre as catástrofes e a euforia dos eventos positivos desse ano, destaca-se o extraordinário experimento político em que nos encontramos implicados, como autores e personagens. Por um lado, as peculiaridades da conjuntura histórica e, por outro, o perfil da vontade política recém-configurada indicam chances reais de fixar, séria e honestamente, os objetivos dos programas de ação política em consonância com os anseios e necessidades da maioria.
A impecável estabilidade institucional e o amadurecimento democrático de que se deu prova reacendem a esperança de enfrentar, com coragem e competência, as crônicas desgraças de nossa história -como a insana concentração da riqueza, que produz miséria e exclusão social em larga escala; a brutal desigualdade de oportunidades, que pune e discrimina os desfavorecidos; a violência e a barbárie, que irrompem em frequentes espasmos de destruição selvagem; a corrupção e o cinismo atávico a corroer como cancro o caráter das pessoas e as entranhas das instituições.
Entretanto, em minha opinião, os progressos que se podem registrar nesse sentido dependem, em grande medida, do êxito numa tarefa talvez ainda mais difícil e importante. Refiro-me à missão de obter uma posição para o Brasil, no contexto econômico e político da globalização, que permita fazer respeitar e promover os interesses da soberania nacional. Esses dois desafios devem ser pensados e enfrentados em sincronia. E isso é muito maior do que o PT e sem medida comum com a mesquinha vaidade dos vencedores, ou com o venenoso ressentimento dos vencidos.
Se Fernando Henrique Cardoso pôde depor honradamente a faixa presidencial, com a merecida reputação de estadista ilustre -a despeito da persistência das mazelas estruturais que desfiguram o tecido social brasileiro-, é porque teve consciência dessa necessidade. Por outro lado, a trajetória pessoal e política de Lula, bem como o capital de confiança que lhe foi eleitoralmente conferido, o credenciam para a missão. Entretanto o peso da tarefa é esmagador, por isso deve ser ponderado com a lucidez que transcende os egoísmos pessoais ou partidários.
Abrir novos horizontes para projetos de desenvolvimento sustentado, sem desconsiderar as restrições impostas pelos interesses do capital globalizado, é a difícil tarefa para a qual não resta outra alternativa. O que está em jogo é o destino do experimento de que tratei acima e, com ele, a importância internacional do Brasil.


A soberania política de um país não é garantida apenas por seus indicadores de crescimento econômico


Aqueles que exigem ética na política têm de manter sempre presente que a vida ética tem na responsabilidade não apenas um pressuposto e condição mas também um imperativo; especialmente naquele sentido alargado de responsabilidade, entendida como aptidão para responder como agente moral e "socius" político. Não há como declinar dessa tarefa sem violentar nossa responsabilidade no plano da cidadania.
Defender os mais altos interesses da nação significa negociar condições aceitáveis para o gerenciamento da dívida externa, limitar o voraz apetite da especulação financeira predatória, manter taxas inflacionárias em patamares toleráveis, fomentar a produtividade do trabalho, racionalizar o equilíbrio entre receita e despesas, de modo a obter o tão cobiçado e temido superávit fiscal. Mas não se limita a isso; implica também tomar parte, como interlocutor respeitado, em decisões e em conflitos internacionais envolvendo questões fundamentais de direitos humanos, de ambiente, de qualidade de vida.
Pois a soberania política de um país não é garantida apenas por seus indicadores de crescimento econômico mas também, entre outras coisas, por sua capacidade de contribuir para o desenvolvimento intelectual e ético mundiais, por meio, por exemplo, de sua aptidão para enriquecer e difundir o patrimônio comum da produção científica, tecnológica e artística da humanidade.
Como escrevi no início, 2002 nos permitiu ensaiar os primeiros passos de um novo experimento nessa direção. Nessa tentativa, a previsão das consequências do erro possível é largamente contrabalançada pela relevância e urgência da tarefa com a qual nos comprometemos. É a consciência dessa responsabilidade que nos obriga a recusar todo confortador escapismo, como: "É o FMI quem vai continuar ditando as regras dos programas de governo". "Agora é a hora de medir a distância entre o delírio demagógico da campanha e o realismo dos planos de ação possíveis." "A opção "light" é só a maquiagem oportunista do totalitarismo cor-de-rosa."
Tais clichês funcionam como próteses mentais limitadoras, constrangendo nosso pensamento a percorrer sempre as mesmas trilhas, pré-formatando respostas descosidas para questões sobre cuja gravidade, de fato, não ousamos refletir. Amparados em tais muletas, com toda a ingenuidade da má-fé auto-iludida, demitimo-nos do dever de pensar fazendo uso de nosso próprio intelecto.
Aqueles que votaram em Lula, assim como, talvez em maior medida, aqueles que não sufragaram seu nome, devem ter em mente o peso da própria responsabilidade em relação àquilo que, nessa tentativa, efetivamente pode acontecer, como deixar de acontecer.
Caso contrário, se engrossarmos o cordão da irreflexão anônima, correremos o sério risco de partilhar o trágico destino dos profetas que, por ação insensata ou omissão inconsciente, colaboram na realização da catástrofe que sua profecia buscava conjurar.


Oswaldo Giacoia Júnior, professor-adjunto do Departamento de Filosofia da Unicamp, é autor de "Folha Explica Nietzsche" (Publifolha).


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