UOL




São Paulo, domingo, 02 de março de 2003

Texto Anterior | Próximo Texto | Índice

TENDÊNCIAS/DEBATES

O câmbio nos tempos do real

ROBERTO GIANNETTI DA FONSECA

Há uma frase, dita pelo ex-ministro Mário Henrique Simonsen nos anos 70, que ainda ecoa com frequência na minha memória: "Inflação alta castiga, mas câmbio desajustado mata!".
A experiência recente tem dado provas cabais de que esta afirmação é absolutamente verídica. Basta olhar para o que aconteceu nos últimos anos na Argentina para entender a que ponto uma equivocada política cambial pode afundar a economia de um país que tinha e tem todas condições e fundamentos básicos para ser uma grande nação.
Aqui no Brasil, a prolongada sobrevalorização cambial que prevaleceu de junho de 1994 a janeiro de 1999 quase nos leva também a um destino trágico, o que só não ocorreu porque o mercado impôs a mudança da política cambial no momento em que esgotavam-se as alternativas de sustentação das contas externas. Mas o estrago que foi produzido nas contas públicas dos governos federal e estaduais ao longo do período, como também na estrutura do setor exportador brasileiro, custou-nos muitas dezenas de bilhões de dólares.
Alguns, que ainda teimam em enxergar a realidade histórica, dirão que esse foi o preço necessário para conquistar a estabilidade monetária introduzida em 1994 pelo Plano Real; mas o que se argumenta é que, com um pouco mais de bom senso e ousadia, poderíamos ter reduzido substancialmente esse preço sem ter posto em risco a estabilidade. Mas isso são águas passadas.
O fato é que a introdução do câmbio flutuante em 1999 trouxe uma outra dinâmica para a economia brasileira, tornando-a muito mais confiável e competitiva na ótica de investidores e financiadores internacionais. Em pouco tempo os fatos decorrentes vieram contradizer os analistas apocalípticos que anunciavam o fim da estabilidade e o colapso do Plano Real logo após a mudança do regime cambial. A introdução simultânea e bem-sucedida do regime de metas de inflação veio consolidar essa nova fase no Banco Central, que se inaugurou com a posse de Armínio Fraga.
A partir de 2000 a inflação recuou para patamares moderados, as exportações deram um salto de 16% sobre os níveis do ano anterior e a economia começou a crescer ao redor de 4,3% ao ano. Tudo parecia que ia bem, até que, a partir de maio de 2001, vieram a crise energética no Brasil, os atentados de 11 de setembro, as fraudes contábeis nas grandes corporações americanas e a onda de aversão a risco que ainda perdura no mercado financeiro internacional.
Nesse contrafluxo de sucessivos eventos negativos, era preciso agir com a máxima cautela, a fim de prever as consequências num futuro próximo. E a questão cambial tornou-se novamente uma variável crítica diante da nova conjuntura internacional e da ainda frágil situação de nossas reservas externas.
Naquele momento era preciso planejar com astúcia e habilidade a atuação do Banco Central no manejo do câmbio, procurando evitar na origem as previsíveis ações especulativas que os operadores financeiros iriam procurar realizar aproveitando-se do nervosismo na fase pré-eleitoral. Pois é no ambiente de alta volatilidade cambial que as mesas de câmbio e de tesouraria dos bancos sempre obtiveram polpudos lucros.


A meu ver, tem faltado recentemente ao Banco Central uma gestão mais perspicaz e habilidosa do câmbio


Diante do iminente risco de desvalorização adicional do real, as empresas com obrigações em moeda forte passaram a demandar crescentes volumes de hedge cambial, o que, como numa profecia auto-realizável , acabou acelerando a queda do real no mercado de câmbio. Debateu-se então se, para defender o real e satisfazer a demanda de hedge pelo mercado, deveria o BC atuar diretamente no mercado de derivativos ou, alternativamente, emitir títulos da dívida pública interna denominados em dólares. Sem argumentos convincentes, a diretoria do Banco Central à época decidiu pela emissão maciça de títulos em dólares, chegando a dolarizar cerca de 40% de nossa gigantesca dívida interna.
Pois bem, não bastasse isso, ainda se estabeleceu para parte desses títulos o período de vencimento entre setembro e outubro de 2002, ou seja, em pleno pleno período eleitoral, quando era previsível que o ambiente especulativo estaria fervendo. E, para completar, avisou-se ao mercado, num espírito de ingênua transparência, que tais títulos não seriam rolados, mas liquidados no vencimento. Foi o convite que faltava para que os insaciáveis operadores de plantão puxassem a Ptax (a taxa de câmbio média do dia anterior ao vencimento dos títulos) às alturas.
A meu ver, tem faltado recentemente ao Banco Central uma gestão mais perspicaz e habilidosa do câmbio, não no sentido de intervir de forma perversa, determinando cotações irrealistas, como as que criticamos severamente nos tempos da sobrevalorização cambial, durante o primeiro mandato do presidente Fernando Henrique Cardoso. Mas sim desmontando as posições especulativas que recorrentemente o mercado vem impondo, gerando nestes últimos meses uma clara subvalorização do real, como também uma volatilidade cambial que tem sido o sonho dos operadores de mesas de câmbio.
Sem querer ser pretensioso, corro o risco de afirmar que a solução para impedir essa especulação cambial é muito simples e já foi aplicada pelo próprio BC no início dos anos 90, quando, pela primeira vez na história recente, a flutuação cambial foi introduzida na economia brasileira. Trata-se, em primeiro lugar, de tornar sigilosa a posição líquida que o Banco Central deseja operar a cada dia. Afinal, jogador de truco que se preze não mostra suas cartas para o adversário. Até porque o direito de blefe deve ser recíproco, e quem não blefa no jogo cambial dificilmente ganha.
Pois bem, para manter o sigilo, somente o presidente e o diretor responsável, a cada manhã, deveriam decidir quanto estaria disponível em reservas para a mesa de câmbio do BC operar no mercado. Seriam criadas duas mesas de câmbio, que, incomunicáveis entre si, receberiam ordens simultâneas de compra e de venda de dólares em valores múltiplas vezes superiores ao valor líquido acordado para o dia. O mercado, sem saber a posição do Banco Central e confuso com as simultâneas ordens de compra e venda, dificilmente conseguiria arbitrar a taxa como vem fazendo.
Se é para mudar que o governo Lula foi eleito, fica minha sugestão para a gestão cambial, vinda de quem assiste com tristeza ao BC levando goleada. Basta de volatilidade excessiva e de especulação permanente. O câmbio deve ser flutuante, mas nem tanto.

Roberto Giannetti da Fonseca, 53, economista e empresário, é coordenador do Conselho de Comércio Exterior do Estado de São Paulo. Foi secretário-executivo da Camex (2000-2002).


Texto Anterior: Frases

Próximo Texto: Giovanni Guido Cerri: Uma nova política para os HUs

Índice

UOL
Copyright Empresa Folha da Manhã S/A. Todos os direitos reservados. É proibida a reprodução do conteúdo desta página em qualquer meio de comunicação, eletrônico ou impresso, sem autorização escrita da Folhapress.