São Paulo, terça-feira, 02 de março de 2004

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TENDÊNCIAS/DEBATES

Não há boas razões para otimismo

GILBERTO DUPAS

Já sabemos que o PIB do país praticamente não cresceu em 2003. Como a população continuou a aumentar, restou ao brasileiro médio ficar ainda mais pobre. O governo garante que 2004 será o ano da virada, mas já modera sua aposta em 3,5%. Podemos até chegar lá, mas os anos seguintes é que são elas.
Recente pesquisa que coordenamos no Instituto de Estudos Econômicos e Internacionais (Ieei) -cujos resultados estarão em livro a ser editado pela Publifolha em breve- mostra razões para grandes preocupações quanto às condições para uma retomada auto-sustentada do nosso crescimento. Ela analisa os fatores determinantes do rápido esgotamento dos ganhos de renda com o Plano Real -após ter elevado o poder de compra dos mais pobres, com o fim da inflação aguda-, que frustou as expectativas de retomada da dinâmica de crescimento no Brasil.


O governo se apropriou da maior fatia do pequeno crescimento do país para pagar juros e aposentadorias


Um dos aspectos centrais dessa análise foi a escalada do desemprego e da informalidade, que constrangem fortemente a massa salarial, o consumo interno e a poupança familiar. Salvo raras exceções, o crescimento do PIB brasileiro no período 1995-2002 -ainda que limitado ao medíocre 0,9% per capita anual- proveio da expansão de commodities atreladas ao comportamento do mercado externo, acompanhado de fortes evidências de terceirização e de diluição do valor agregado local. A eliminação da inflação também explicitou uma série de novos conflitos redistributivos. Os efeitos das novas medidas de proteção social foram irrelevantes em termos macrossociais, apesar da inegável melhoria nos métodos de transferência e de eleição dos beneficiários. Isso porque o baixo crescimento, aliado à abertura econômica e ao aumento dos tributos, empurrou para a marginalidade muitos brasileiros, especialmente nas regiões metropolitanas.
Além do mais, os bens de menor elasticidade-renda, como os serviços de utilidade pública, apresentaram aumentos de preço muito superiores à média dos salários e dos demais bens; e os impostos diretos tiveram um crescimento real de mais de 100% no período, reduzindo acentuadamente a renda disponível dos cidadãos ocupados. Como resultado de um ambiente instável e contracionista, o consumo das famílias e do governo -responsável por quase 80% do PIB- teve um crescimento per capita negativo, enquanto os investimentos permaneceram praticamente estagnados, impedindo o início de um novo ciclo sustentado de crescimento no Brasil do pós-Real. O resultado foi uma redução sistemática da participação dos salários e ordenados no PIB, mesmo quando adicionados das transferências brutas do governo: aposentadorias, pensões, benefícios sociais e assistenciais.
Enquanto isso, a despesa real líquida do governo com juros cresceu de R$ 39 bilhões (1996) para R$ 85 bilhões (2002), ou seja, quase um terço do crescimento do PIB migrou para lucros das instituições financeiras e rendas provenientes de aplicações financeiras. Com o Orçamento nacional pressionado, serviços e investimentos públicos tornaram-se variáveis críticas de ajuste e foram progressivamente deteriorados. O governo reduziu a condição de exercer suas funções típicas, perdendo capacidade operacional e legitimidade.
Além de seus impactos sobre as finanças públicas, a situação descrita teve conseqüências sérias no plano das estruturações familiares: o consumo médio das famílias brasileiras caiu 14% no mesmo período. Os dados da região metropolitana de São Paulo, que teve o pior desempenho nacional, são impressionantes. Aumentou bastante o número de famílias com rendas unicamente informais. O desemprego aberto total da região passou de 13% para 19% e o tempo médio de procura de trabalho dobrou de 25 para 50 meses, após ter se mantido relativamente estável na década 1986-95. A população trabalhando e em busca de trabalho (PEA) cresceu em 1,193 milhão de pessoas; dessas, apenas 490 mil tornaram-se ocupadas e 703 mil permaneceram desempregadas.
A taxa de desemprego dos chefes de família elevou-se de 7% para 11%. As mulheres deixaram os filhos e suas casas e correram ao mercado na condição de domésticas; como conseqüência, enquanto a queda de renda dos assalariados com carteira assinada foi de 27% entre 1995 e 2002, a categoria das empregadas domésticas foi a única que não teve queda de renda. A maior perda (41%) foi para os autônomos, sintoma trágico do avanço da precariedade; seguiram os empregadores (-32%), os assalariados do setor privado (-22%) e os do setor público (-17%).
Em resumo, no pós-Real o desemprego cresceu progressivamente, enquanto o PIB se manteve com tendência de queda. O governo, premido pelo peso da sua dívida líquida e pelos novos encargos sociais, acabou se apropriando da maior fatia do pequeno crescimento do país para pagar juros e aposentadorias; enquanto isso a formação bruta de capital e o consumo final decresceram.
Já os juros reais, fruto dos desequilíbrios interno e externo acumulados e não resolvidos, foram mantidos sistematicamente acima da taxa média de retorno dos investimentos. Não há, pois, razões para otimismo. Uma retomada do crescimento sustentável no país só ocorrerá se, além de uma radical e permanente redução da taxa de juros reais, vigorosas políticas públicas permitirem tratar os desequilíbrios interno e externo, incluindo um choque de valor adicionado local nas exportações; e se uma expressiva recuperação da renda das famílias tornar o mercado interno favorável ao desenvolvimento. Tarefa complexa, a depender de enérgicas ações internas e de circunstâncias internacionais.

Gilberto Dupas, 61, coordenador-geral do Grupo de Análise da Conjuntura Internacional da USP, é presidente do Instituto de Estudos Econômicos e Internacionais.


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