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ANTONIO DELFIM NETTO
Frankenstein ressuscitado
A discussão sobre a necessária
revisão do artigo 192 da Constituição Federal, que regula o sistema financeiro, já dura 14 anos. A razão básica reside na redação do caput do artigo, que reza que "o sistema financeiro nacional, estruturado de forma a
promover o desenvolvimento equilibrado do país e a servir aos interesses
da coletividade, será regulado em lei
complementar, que disporá, inclusive,
sobre:
IV - a organização, o funcionamento
e as atribuições do Banco Central e demais instituições financeiras públicas
e privadas;
V - os requisitos para a designação
de membros da diretoria do Banco
Central e demais instituições financeiras, bem como seus impedimentos
após o exercício do cargo".
Num dos dias mais cômicos (e mais
trágicos!) da constituinte, o lobby irresistível de sonegadores contumazes
aprovou o parágrafo 3º do mesmo artigo que, até hoje, causa constrangimento risível. Ele diz:
"Parágrafo 3º - As taxas de juros
reais, nelas incluídas comissões e
quaisquer outras remunerações direta
ou indiretamente referidas à concessão de crédito, não poderão ser superiores a doze por cento ao ano; a cobrança acima desse limite será conceituada como crime de usura, punido,
em todas as suas modalidades, nos
termos que a lei determinar".
O aspecto cômico corre por conta do
fato de que os autores da emenda não
souberam dizer, no plenário, o que seriam "as taxas de juros reais"; trágico
porque ressuscitava uma tradição de
Carlos Magno, que fixou os juros (nominais, não reais!) no ano de 789, num
dispositivo que só foi revogado mil
anos depois, na Revolução Francesa.
Risível por seu evidente arcaísmo medieval! O fato importante a considerar
é que o dispositivo do rei dos francos
nunca foi obedecido, principalmente
pela Igreja Católica, que sempre encontrou sofisticados argumentos escolásticos para ilidir a "lei de usura".
Ah, do que foi capaz, no "annus mirabilis" de 1988, a organizada corporação dos devedores profissionais...
Como é evidente, um dispositivo como esse levado a sério criaria problemas incontornáveis para o funcionamento adequado de uma economia
de mercado. Contraditório, portanto,
com a sociedade proposta na própria
Constituição. A saída jurídica encontrada para congelá-lo foi apelar para
santo Saulo ("aquele que foi chamado", em hebraico), que mostrou que o
dispositivo do "caput" exigiria uma (e
apenas uma) lei complementar para
regular todo o artigo. Em outras palavras: enquanto todo o artigo não fosse
completamente regulamentado pela
"lei complementar global" (que teria
pelo menos mil artigos!), nenhum dos
seus dispositivos seria auto-aplicável.
Esse foi o "requiescat in pace" que
poupou o Brasil do riso mundial...
É por isso que a sugestão de pluralizar o "caput" do artigo 192, supondo-o regulável por "leis complementares", sem suprimir o seu parágrafo 3º,
apenas traria de volta do reino dos
mortos o Frankenstein ressuscitado!
Antonio Delfim Netto escreve às quartas-feiras nesta coluna.
dep.delfimnetto@camara.gov.br
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