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São Paulo, quarta-feira, 02 de abril de 2003

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ANTONIO DELFIM NETTO

Frankenstein ressuscitado

A discussão sobre a necessária revisão do artigo 192 da Constituição Federal, que regula o sistema financeiro, já dura 14 anos. A razão básica reside na redação do caput do artigo, que reza que "o sistema financeiro nacional, estruturado de forma a promover o desenvolvimento equilibrado do país e a servir aos interesses da coletividade, será regulado em lei complementar, que disporá, inclusive, sobre:
IV - a organização, o funcionamento e as atribuições do Banco Central e demais instituições financeiras públicas e privadas;
V - os requisitos para a designação de membros da diretoria do Banco Central e demais instituições financeiras, bem como seus impedimentos após o exercício do cargo".
Num dos dias mais cômicos (e mais trágicos!) da constituinte, o lobby irresistível de sonegadores contumazes aprovou o parágrafo 3º do mesmo artigo que, até hoje, causa constrangimento risível. Ele diz:
"Parágrafo 3º - As taxas de juros reais, nelas incluídas comissões e quaisquer outras remunerações direta ou indiretamente referidas à concessão de crédito, não poderão ser superiores a doze por cento ao ano; a cobrança acima desse limite será conceituada como crime de usura, punido, em todas as suas modalidades, nos termos que a lei determinar".
O aspecto cômico corre por conta do fato de que os autores da emenda não souberam dizer, no plenário, o que seriam "as taxas de juros reais"; trágico porque ressuscitava uma tradição de Carlos Magno, que fixou os juros (nominais, não reais!) no ano de 789, num dispositivo que só foi revogado mil anos depois, na Revolução Francesa. Risível por seu evidente arcaísmo medieval! O fato importante a considerar é que o dispositivo do rei dos francos nunca foi obedecido, principalmente pela Igreja Católica, que sempre encontrou sofisticados argumentos escolásticos para ilidir a "lei de usura". Ah, do que foi capaz, no "annus mirabilis" de 1988, a organizada corporação dos devedores profissionais...
Como é evidente, um dispositivo como esse levado a sério criaria problemas incontornáveis para o funcionamento adequado de uma economia de mercado. Contraditório, portanto, com a sociedade proposta na própria Constituição. A saída jurídica encontrada para congelá-lo foi apelar para santo Saulo ("aquele que foi chamado", em hebraico), que mostrou que o dispositivo do "caput" exigiria uma (e apenas uma) lei complementar para regular todo o artigo. Em outras palavras: enquanto todo o artigo não fosse completamente regulamentado pela "lei complementar global" (que teria pelo menos mil artigos!), nenhum dos seus dispositivos seria auto-aplicável. Esse foi o "requiescat in pace" que poupou o Brasil do riso mundial...
É por isso que a sugestão de pluralizar o "caput" do artigo 192, supondo-o regulável por "leis complementares", sem suprimir o seu parágrafo 3º, apenas traria de volta do reino dos mortos o Frankenstein ressuscitado!


Antonio Delfim Netto escreve às quartas-feiras nesta coluna.
dep.delfimnetto@camara.gov.br


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