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JOSÉ SARNEY
Desestabilização
e ladainha
A história, além de mestra, passou a ser, hoje, uma vitrine onde
se pode acompanhá-la em tempo real.
A primeira sensação que tive de ver a
história, estar dentro do redemoinho
do acontecer, foi com minhas visitas à
União Soviética em 1988 e à Rússia em
2000. O território era o mesmo, as pessoas também, os anos bem próximos,
mas tudo mudara e estava mudando.
Dez anos antes a moeda era o rublo
com a efígie de Lênin, em 2000 era a
águia bicéfala, símbolo dos Romanov,
malditos e assassinados, agora redivivos. A bandeira da foice e do martelo
cedera lugar à bandeira tricolor do império e Nicolau 2º, canonizado pela
igreja ortodoxa, é, agora, venerado
nos altares. Lênin encontrei em um
sósia, tirando fotografias com turistas
por US$ 5.
Vejo, agora, com a mesma sensação,
mais diluída, os julgamentos sobre a
revolução de 64. Cada um conta um
pedaço, com a marca dos sentimentos
pessoais de quem viveu os fatos. Pensei que o passado era história e fiquei
certo de que ainda não é história, mas
subsídios para a história com pouco
do passado e muito do presente. A declaração do presidente Lula me pareceu perfeita: "Cabe agora aos historiadores fixar a justa memória dos acontecimentos e personagens daquele período".
De definitivo, somente o exemplo
dos frágeis tempos institucionais que
passamos, esses sim coisas do passado. Mas há um componente de natureza diferente que se incorporou à democracia nos tempos modernos,
componente perigoso. Nasceu um outro contrapoder, fruto da modernidade da informação e das tecnologias em
tempo real, que é a busca de substituir
a representação, com legitimidade
posta nos mandatos, por uma legitimidade feita pelas pesquisas e pela
ação política desestabilizadora. Os
marxistas proclamavam três formas
de contrapoder: "a resistência, a insurreição e a constituinte". Agora surgiu
outra, a desestabilização. Com ela, balança-se o poder e a legitimidade passa a ser moeda corrente no embate entre governo e oposição.
Getúlio não resistiu a ela, pois mostrou-se despreparado para lidar com
as formas do poder democrático depois da eleição de 50. Teve, acuado pela desestabilização, de dar um tiro no
peito. Juscelino, marcado para ser deposto, teve a grande capacidade política de sobreviver e, depois, declarava:
"De tudo o que fiz, a maior obra foi
evitar o truncamento da democracia".
Jânio também sucumbiu pela renúncia, por sua incapacidade de lidar com
as pressões desestabilizadoras. Não
vamos falar dos militares, alguns deles
alcançados também pela doença, outra forma de sucumbir.
Eu, marcado para perder para a desestabilização, resisti. Fiz a Constituinte, vivi e soube enfrentar o jogo democrático. Entreguei o país com uma sociedade democrática, livre, instituições consolidadas. Fiz a transição e sobrevivi.
Collor, outra renúncia. Fernando
Henrique também soube conviver
com as tentativas de ilegitimidade e
desestabilização. Isso passou a ser
uma forma de luta política.
Lula não pode fugir à regra e à crise
dos contrapoderes. Com uma diferença: não vem do embate político, mas
de um dos braços do aparato do Estado, reincidente.
Mais uma vez recordo a sabedoria
nordestina: "O pau tá torando onde
devia ter ladainha".
José Sarney escreve às sextas-feiras nesta coluna.
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