São Paulo, quinta-feira, 02 de maio de 2002

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TENDÊNCIAS/DEBATES

Fascismo e pecados sexuais

ROBERTO ROMANO

A igreja enfrenta uma situação nova no mundo todo, sobretudo nos EUA. A notícia não reside nos atentados cometidos por alguns padres contra crianças e mulheres. Essa prática, desde a noite dos tempos, subsiste na instituição religiosa. Para constatar isso, basta abrir livros idôneos de história.
O novo é a consciência jurídica dos religiosos que recusam a tutela civil da hierarquia. Os processos apresentados à Justiça mostram que amadureceu a consciência política dos féis.
Esta via, a do Estado de Direito, é a mais eficaz para resolver malefícios humanos. Enganar os leigos tornou-se, desse modo, uma tarefa muito difícil. Contrabalançando o lado triste dos abusos, esta perspectiva traz esperanças de rumos inauditos, não apenas na igreja, mas no Estado que possui instituições democráticas.
Quando um povo imenso, solto pelo mundo, como o católico, assume os seus direitos e sua maioridade (bendito Kant!), é impossível fazê-lo retornar ao guante de padres ou de líderes seculares. O nó da questão sexual que abala a comunidade religiosa encontra-se, em grande parte, no papel político que ela reserva às mulheres. Quando elas forem mais valorizadas, inclusive no plano sacerdotal, o desequilíbrio afetivo será atenuado entre o clero. Mas os erros nunca serão abolidos.
A pedofilia é um aspecto do horror humano. Existem inumeráveis faces do mal. A catolicidade jamais aceitou o maniqueísmo. Desde Santo Agostinho até os nossos dias, a experiência religiosa mais profunda percebe e tematiza a luta entre bem e mal nos indivíduos, sejam eles padres, militares, políticos, comerciantes, cientistas, juízes, velhos ou moços. Segundo a ortodoxia, o mal é um mistério sem localização limitada, e seu reino é o mundo inteiro. Ninguém o monopoliza, como ninguém pode exibir a posse exclusiva do bem. Os ensinamentos antropológicos que a igreja encerra nos seus meandros doutrinários, a sua aguda percepção da beleza e dos horrores escondidos nas dobras das almas fornecem numerosos exemplos de necessária prudência quando se trata de enfrentar a questão do mal.


Segundo a ortodoxia, o mal é um mistério sem localização limitada, e seu reino é o mundo inteiro


A notícia de hoje, no plano dos costumes, é o abuso da inocência infantil. No setor político, temos a ressurreição fascista. Quando a igreja foge da luta em prol do bem comum democrático, como sucede sob João Paulo 2º, sobram, como fonte de interesse da mídia por ela, as suas teratologias sexuais. É possível ir mais fundo: a indiferença dos hierarcas quanto aos males políticos é sinal de que eles colaboram para o desarmamento dos povos diante dos regimes de força. Quanto mais o problema do mal se reduz às subjetividades, no ensino religioso, mais o campo está livre às formas objetivas da pornografia fascista.
Seria urgente que padres, bispos, leigos católicos, amigos e inimigos da igreja lessem Georges Bernanos, autor que trata dos dois assuntos, pecado da carne e fascismo. Bernanos veio ao Brasil para fugir da catástrofe totalitária, gerada com as bênçãos de setores eclesiásticos. Aqui, Bernanos redigiu textos densos e violentos. Tratou, sobretudo, dos padres e das freiras.
Seu romance mais negro, "Monsieur Ouine" (1946), mostra que o mal se transmite de modo sutil e imperceptível. O desespero domina, como num imenso campo de concentração, a alma dos que vivem na sociedade "normal". Naquele romance, a presença e a ausência divinas jogam o leitor na mais dura bestialidade, travestida de espírito.
O escritor, que realizou em cada um de seus livros a descida aos infernos (termo de Jean Starobinski), publicou em 1926 o tremendo "Sob o Sol de Satã". O sinal de Lúcifer marca o desgraçado século 20. Em 1928 veio "A Impostura". Em 1931, quando boa parte dos católicos flertou com os fascismos, surgiu "O Grande Medo dos Bem-Pensantes". Na hora em que o nazismo inaugurava sua fábrica de horrores, Bernanos publicou o "Diário de um Padre do Interior" (1936). O romance "Caminho da Cruz das Almas" (1948), no dizer de um analista, "quebra todas as juntas do leitor".
O renascimento fascista na Europa, com Le Pen e seus amigos, mostra a importância, não só para a vida eclesiástica, mas para a política em geral, dos escritos de Bernanos. O fascismo não vem ao mundo como um raio em dia calmo. Ele brota da mistura de tédio e lama, luz e opacidade que define cada um dos mortais, sobretudo os bem-pensantes.
No ápice das obras daquele grande profeta e romancista, encontra-se a peça teatral que deveria ser encenada em nossos dias: "O Diálogo das Carmelitas". A morte domina todos os homens, sobretudo os que deveriam estar mais próximos do sagrado. O desespero os impele a agarrar lambões de vida, sujando toda e qualquer inocência, em matéria de sexo ou de política. Os danados, massas ou lideranças, padres ou fiéis, aderem às promessas do mal, quando alardeadas pela propaganda do fascismo como a única saída para os "bons".
Nos escritos de Bernanos, não existe lugar para divisões metafísicas entre bons e maus. Nenhum açúcar estraga o sabor ácido da vida humana. Padres e freiras pecam e os inocentes podem praticar os piores malefícios. O perdão e a morte se complementam, em especial na banalidade cotidiana.
Para os que imaginam "resolver" o problema dos padres pedófilos com o casamento, ou pensam equacionar problemas de psicologia social através de medidas policiais, a leitura de Bernanos alerta e recomenda muita prudência. O mal se espalha e se espelha em tudo e em todos. É preciso combater as suas infinitas formas, mas urge, sobretudo, fugir de seu avatar mais perigoso e sutil: a hipocrisia fascista.


Roberto Romano, 55, filósofo, é professor titular de ética e filosofia política na Unicamp.



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