São Paulo, domingo, 02 de junho de 2002

Próximo Texto | Índice

NÃO É TÃO SIMPLES

Vão-se acumulando indícios de que a clonagem reprodutiva envolve processos bioquímicos muito mais complexos do que se poderia suspeitar à primeira vista.
Em princípio não há muito mistério no tipo de clonagem que levou à criação da ovelha Dolly, em 1996. Basta apanhar um óvulo, retirar o seu núcleo, substituí-lo pelo núcleo da célula do indivíduo que se quer reproduzir e estimular, por meio de uma corrente elétrica, o processo de divisão celular. Obtém-se, assim, um embrião que, se for implantado num útero compatível, poderá em teoria desenvolver-se plenamente até formar uma cópia quase perfeita do organismo original.
Na prática, porém, as coisas não são tão simples. Desde o início das clonagens verificou-se um número surpreendentemente alto de abortos e de indivíduos com más-formações e doenças. A própria Dolly padece de uma forma rara de envelhecimento precoce, além de artrite.
Pesquisas recentes sugerem que as dificuldades para gerar clones têm a ver com o processo de "imprinting", ou marcação epigenética, um mecanismo altamente complexo e ainda pouco compreendido que o organismo usa para ativar e desativar determinados genes de acordo com as necessidades. Falhas no "imprinting" poderiam levar à inviabilidade fetal.
Como existe uma sintonia fina muito delicada entre os grupos de genes que são ativados e desativados no "imprinting", é improvável que o problema possa ser resolvido com umas poucas alterações no processo de clonagem. Ao que tudo indica, esse tipo de reprodução ainda vai seguir, por algum tempo, funcionando na base de tentativa e erro.
Essa dificuldade deveria bastar para que se estabelecesse uma moratória nas tentativas de clonagem reprodutiva humana. Se um animal nasce com más-formações por conta da técnica de reprodução, é sempre possível sacrificá-lo. No caso de seres humanos, não. Sob qualquer ângulo que se analise, tentar obter clones humanos no atual estado-da-arte configura séria infração ética.
Infelizmente, existem dois ou três grupos que estão tentando produzir indivíduos humanos por técnicas de transferência nuclear como a que gerou Dolly. A clonagem pode até ser inevitável, mas isso não impede que se qualifiquem como irresponsáveis os que procuram realizá-la agora.
Esse tipo de atitude também contribui para lançar dúvidas sobre um outro tipo de clonagem, a terapêutica, que constitui pesquisa legítima e tem por finalidade obter cepas compatíveis de células indiferenciadas. Estas têm grande potencial terapêutico contra diversas moléstias.
A pergunta que se deve fazer é: superadas as dificuldades técnicas (se é que elas podem ser superadas), a clonagem reprodutiva deve ser liberada? Essa é a discussão que, do ponto de vista ético, realmente importa. É moralmente correto gerar um ser que já nascerá com a dura carga de ser uma cópia quase idêntica de outro indivíduo, que sofrerá -e eventualmente morrerá- das mesmas doenças ?
Por outro lado, é correto vedar desde já todas as portas para um processo sobre o qual há tantas dúvidas? Se a clonagem for a única alternativa para pessoas inférteis deixarem descendência, é correto impedi-la?
Esse debate, que é o verdadeiramente relevante, vem sendo obnubilado por discussões acessórias. Isso até pode ser inevitável, mas não se torna menos lamentável.



Próximo Texto: Editorias: OS RISCOS GLOBAIS


Índice



Copyright Empresa Folha da Manhã S/A. Todos os direitos reservados. É proibida a reprodução do conteúdo desta página em qualquer meio de comunicação, eletrônico ou impresso, sem autorização escrita da Folhapress.